sexta-feira, 15 de julho de 2016

«Casa de férias com piscina» de Herman Koch :: Opinião

Herman Koch photographed at The Empire Hotel in New York City. June 2014
Fonte: macleans

"De vez em quando rebobina-se a vida para ver em que momento podia ter seguido noutra direcção. Contudo, às vezes não há nada para rebobinar; uma pessoa ainda não sabe, mas a partir daquele momento só vai em frente."

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Herman Koch é já reconhecido pela mestria com que denuncia a hipocrisia, a inveja e o quanto os sentimentos e as relações se podem tornar de tal modo viscerais, que fragilizam e fragmentam essas mesmas relações, pondo em causa a própria vida. E este, «Casa de férias com piscina», não é excepção. 

Marc Schloss é um médico de família peculiar e com um humor e opiniões tão aguçadas como o bisturi que não usa no exercício da sua profissão. Ou não devia usar. Ralph Meier é um actor bastante conhecido, achando que o reconhecimento e a fama o isentam de certas normas e julgamentos alheios. Ambos reputados, casados e opiniosos, medirão forças e experimentarão desejos fruto da proximidade que não era suposto terem. Já que Marc sofre de excesso de zelo em tudo o que se refere a corpos e Ralph tem predilecção por corpos. Femininos entenda-se. No entanto, não é só Caroline, a esposa de Marc que interessa a Ralph; também Judith, esposa de Ralph desperta em Marc vontades que conduzirão a família deste a um evento sem retorno e que alterará o curso das vidas de ambas as famílias. 

"Uma boca é um mecanismo. Um instrumento. Uma boca respira o oxigénio. Mastiga a comida e engole-a. Prova, sente se algo está demasiado quente ou frio. Naquele momento encarei Judith de novo e continuei a fitá-la enquanto tinha estes pensamentos acerca de bocas. Um olhar diz mais do que mil palavras. É um cliché. Contudo, um cliché expressa mais do que mil palavras."

Os clichés estão tão presentes neste livro como na vida em si e não me parece que Koch queira fugir deles, julgo que quer antes encontrar personagens que vivam num constante combate contra esses clichés, mas que depois os sintam como uma parede que de repente os traz à realidade, pela dura mão dos eventos que não controlamos. Mas tudo isto sem privar o leitor de uma amálgama de pensamentos acutilantes, irónicos e suculentos que insere e dão corpo às personagens. Sim, é verdade, alguns deles chegam a enervar de tão asquerosos ou irritantes que são, mas é aí que encontramos a essência da escrita de Koch, o brilhantismo do seu lado negro e que não disfarça o desprezo por inúmeras situações do quotidiano.

"A gordura está em toda a parte, rodeia os órgãos por todos os lados. Ausculto com o estetoscópio. Escuto os pulmões, que a cada inspiração têm de empurrar a gordura para o lado. «Expire muito devagar», peço, e ouço a gordura a voltar ao seu lugar. O coração não bate: pula. O coração faz horas extraordinárias. O sangue tem de ser bombeado a tempo para todas as extremidades do corpo, mas as artérias também estão rodeadas de gordura. «Agora inspire calmamente», peço. A gordura fica a postos. (...) É uma luta (...) invisível a olho nu."

Marc Schloss não esconde nada, revela-nos as suas fantasias as suas divagações, enquanto se tenta refugiar no poder da imaginação, fugindo do corpo de cada paciente e da sua conversa de doente. Muitas das fugas imaginárias são autênticas criticas sociais. 

"Comprei um relógio com ponteiros luminosos de propósito para as estreias de teatro. Acontece algo com o tempo durante uma peça de teatro que ainda não consegui identificar. O tempo não pára, isso não: coagula. (...) é como se mexesse com uma colher uma substância que se torna espessa rapidamente. A um dado momento a colher pára, fica de pé na substância (...)
Uma pessoa pensa (espera, reza) que já passou meia hora, mas os ponteiros indicam apenas doze minutos (...) Não se pode gemer ou suspirar (...) Quem geme ou suspira em voz alta distrai os actores."

Poderíamos continuar a citar as infindáveis criticas que o narrador e personagem principal tecem sobre tudo o que os rodeia e que caracteriza a vida contemporânea. Nada lhe escapa, é cada parágrafo, cada facada.

"Holandeses no estrangeiro. 
Os empreendedores holandeses queixam-se muito das maquinações incompreensíveis da burocracia do país em questão. (...) Nós, holandeses, gostamos de trabalhar no duro. Por que razão nos levantam tantos obstáculos? Aqui são alérgicos ao trabalho (...) Ao fim de dois ou três anos a amaldiçoar e a maldizer (...) agarram nos tarecos e regressam a casa furiosos."

Podemos dizer que nada escapa à análise milimétrica do Dr. Schloss e mesmo se experimentamos sentimentos menos empáticos para com o personagem, rapidamente estamos ávidos pelo seu próximo alvo e rimos perdidamente quando ele próprio se põe a jeito de ser criticado e ridicularizado. 

O livro é inquietante e inesperado e o enredo é viperino o suficiente para imprimir um ritmo alucinante à leitura, não poupando quaisquer questões, até a da ética médica, colocando assim o leitor numa perseguição desenfreada a fim de perceber que águas quentes agitaram aquele Verão. 

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Um livro ALFAGUARA | Penguin Random House Grupo Editorial 


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