terça-feira, 21 de março de 2017

«Cartas Vermelhas» de Ana Cristina Silva :: Opinião


Carol, nascida em Cabo Verde, forma a sua identidade política, de ideais comunistas, enquanto estuda e vive a sua juventude em Lisboa, algum tempo depois já mãe, vê-se obrigada a deixar a filha num colégio russo para levar a cabo as suas missões partidárias. Os anos decorrem, os amores chegam e partem e a militância comanda-lhe os sonhos e a vida. Agora é tempo de reencontro, mas já passaram mais de 20 anos.

"O meu propósito não era modificar o passado, tão-pouco configurá-lo numa versão benigna, favorecendo-me através da descrição das circunstâncias que limitaram as minhas escolhas. No fundo, apenas desejava que reconhecesses como eu fora arrojada nesse tempo em que imaginava um novo mundo onde a felicidade dos homens viesse a ser saciada."

"Só a paixão detém poderes para anular as distâncias. Só esse estado fulminante faz com que o amor se perca de toda a racionalidade."

Sem modificações ou versão benigna, viajamos com Carol pelo seu passado, relatado através da sua memória, não para trazer de volta os anos que se perderam entre mãe e filha, mas para relatar o que foi a sua vida nos cerca de 20 anos de ausência na vida uma da outra. Desde a infância em Cabo Verde, até aos anos em Lisboa, e às missões pelo estrangeiro, tudo vai sendo relatado ao longe de capítulos que demonstram a escrita cuidada e equilibrada de Ana Cristina Silva. 

"O povo de Cabo Verde não era formado por gente, mas por silhuetas famintas que se moviam lentamente. Mas os miseráveis da Cidade da Praia (...) em vez de chorarem lágrimas crepusculares, quando a luminosidade do dia declinava, preferiam entoar cânticos festivos na praia, ao som de tambores."

Do amor a um povo e a uma cultura que sempre desinquietou Carol, rapidamente passamos à admiração pelas palavras visionárias que a fizeram abraçar a causa comunista. E também abrir espaço a novas aventuras e amores que a consumiam com o fogo da paixão, mas também a lucidez de uma mulher que se desejava independente.

"O discurso dele ia ao encontro do que sempre procurara em Cabo Verde e nunca descobrira. A justiça da doutrina inspirava-a. Ele não se exprimia como quem dá lições, mas como um verdadeiro visionário."

"Aquele beijo constituiu para Carol a verdadeira origem da autoconsciência do seu poder de mulher. Apesar da inexperiência, intuíra que, como em certos livros, no amor há sempre um que ama e outro que é amado..."

Avançamos enredo adentro com as várias identidades que Carol assumiu, mas aceitamos desde logo que a política e as suas aventuras e desventuras são o foco central do livro, as paixões, os homens, os amigos, os militantes, os destinos, são meros veículos para conhecermos esta mulher que agora se apresenta, por via da ficção, à filha Helena. A narrativa espelha uma certa angústia e um tom distante, mas, a meu ver, em busca de reconhecimento pelo percurso que traçou. 

"Ao relembrar o que aconteceu, puxa-se o fio de um novelo cuidadosamente enrolado. Um romance favorece uma história coerente, conseguindo atenuar a incongruência de certas acções, abrindo caminho para escolhas plausíveis que ficam bem numa narrativa, mas que na vida real revelam consequências devastadoras. Se confiarmos no texto, fico mais parecida com uma criatura mais fiável e corajosa."

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