domingo, 12 de março de 2017

"Céus Negros” de Ignacio del Valle - Opinião


Estreei-me na saga de Arturo Andrade neste «Céus Negros» que é o quarto volume dos aclamados thrillers de Ignacio del Valle que tem arrecadado diversos prémios com estes seus livros. É precisamente o caso deste, que ganhou o Prémio da Crítica das Astúrias e o Prémio Violeta Negra do Festival de Toulouse. 

Este «Céus Negros» não é só um policial é também um romance de carácter histórico, as descrições espelham o ambiente da década de 50, numa Espanha franquista e fervilhante de resistência anarquista. Há um crime para resolver, é certo, mas há também a urgência da denúncia, de deixar descritos episódios que revelam crimes e atrocidades de outros tempos, mas não assim à tanto tempo. 

"Dedicara-se, de igual modo, a ler sistematicamente todos os jornais a que conseguia deitar a mão, numa tentativa de decifrar, por entre as deturpações, retóricas, falácias, mistificações, eufemismos e duplos sentidos, algo que pudesse ajudá-lo a formar uma ideia da realidade para lá da cosmética do poder."

O surgimento de um corpo de uma criança é só o princípio de uma investigação que colocará a descoberto diversos podres que vão ao encontros das piores expectativas do capitão Andrade, aquela que é toda uma rede sustentada pelo sistema que deveria apoiar e salvar é a que condena, sem quaisquer escrúpulos ou limites. 

"- Justiça... Mas qual? A justiça não é mais do que uma conversa que varia segundo as circunstâncias e o momento histórico. (...)"
- Todas as opções são más, mas devemos distinguir entre um mal necessário e um mal conveniente. Aí reside a justiça, que não é absoluta, é dela apenas uma dose mínima."

O cenário árido da Extremadura é aqui bastante bem descrito, especialmente pela constante referência ao calor, tornando a investigação num inferno ainda maior. Aliás, as vidas em geral que se cruzam neste enredo todas eles têm algo de infernal, de luta, de resiliência e de sobrevivência. Especialmente as das crianças.

"Tínhamos tanta sede que algumas se levantavam durante a noite, o que era absolutamente proibido, para ver se tinha ficado água nas banheiras (...) Também nos empoleirávamos nas sanitas para beber água dos autoclismos."

A violência, os cenários de tortura, o palavreado grosseiro e o alvoroço são recorrentes e pautam os diálogos, por vezes, a meu ver, até em excesso, no entanto a qualidade das passagens mais históricas e descritivas dão outro ritmo e outro interesse ao livro, Del Valle consegue agarrar o leitor pela narrativa quando a adensa e aperta a malha da realidade, tornando-a intemporal.

"Por vezes não vale a pena sobreviver à desilusão, e aquele homem era alguém destruído. Para resistir, é preciso uma pessoa olhar-se ao espelho e perdoar-se por ter sobrevivido (...) As pessoas eram assim, precisavam de encontrar alguém mais culpado do que elas."

"Madrid. A alma de Madrid pertencia ao céu azul e subtil. Era propriedade de algum verso solto. Encontrava-se nos copos bem servidos das suas tascas. Ou nas sombras das suas estátuas e mármores."

Ignacio del Valle traça um enredo que fomenta a leitura ávida e nos deixa sempre com a sensação que piores acontecimentos estarão para vir, afinal de contas lidamos com a inocência das crianças e a perda de toda essa conquista que devia ser a infância, um período de aventuras e magia e não a luta pela sobrevivência.


Um livro Porto Editora

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