sexta-feira, 9 de junho de 2017

«A terra que pisamos» de Jesús Carrasco :: Opinião


Jesús Carrasco volta com mais dor e mais vazio, provando que a humilhação e o medo têm o poder de amputar e anestesiar quem é subjugado e cujo a vida é fruto dessa aridez que é a submissão imposta e ameaçadora. Assim é o cenário aqui construído, numa terra que cravou marcas profundas em quem a cedeu, mas não menos em nela fez vida, pisando o sangue e os ossos daqueles que vitimaram e mataram. 

"O sono é um imperativo necessário mas frágil. (...) Molhar-se, claro, mas nunca se sentir envolvido por essa outra substância que purifica a pele e a pressiona. (...) O sonho como combustível para a consciência. Para poder voltar a transitar pelo inferno, nem que seja aos tropeções. O inferno é estar acordado e o verdadeiro descanso, nessas condições, só pode ser procurado pela morte. Ter os olhos abertos já não significa dor (...) Estar acordado significa não ser capaz de interpretar o que acontece à sua volta."

Uma presença inesperada desperta de um certo torpor uma mulher que, isolada, habita uma casa e uma terra, ganha pela violência exercida pelo marido e a força militar a que pertencia, durante um período de anexações de novas terras ao maior império existente. Esta presença, estranha e silenciosa, altera-lhe os contornos do pensamento e da consciência, exigindo uma aceitação que a condena e a faz sofrer, expiando os seus pecados enquanto expia aquele homem que se acanha e se contorce como quem se pretende fundir na terra, na Natureza, que mesmo bruta e exigente nunca humilha, como os homens se humilham uns aos outros. 

"Pela primeira vez penso que o seu alheamento não é mais do que o resultado do sofrimento pelo qual passou. (...) Aceita o sofrimento como se a sua origem fosse espontânea, como se fizesse parte do que está à sua volta. Mas não foi assim, pois não há na natureza nada que per se seja humilhante. O que este homem carrega nos ombros foi-lhe infligido por outros."

Com este livro, Carrasco venceu o Prémio de Literatura da União Europeia 2016, já tendo sido bastante aclamado pela crítica com o seu romance anterior «Intempérie». Considero este superior, pois mantêm todo o esmagamento provocado pela humilhação, o desconhecido e a crueza da natureza, tal como no outro, mas acrescenta um detalhe muito interessante, a desigualdade feminina e o poder de uma mulher visto como desafio aos homens que a rodeiam. Essa voz feminina que aqui encontramos traz, a meu ver, outra força ao texto. 

"Ele pode suportar a ideia de ser interpelado por outro homem (...) Mas eu sou uma mulher e estou a desafiá-lo. (...) Fica muito bem que sejamos nós a fazer refer~encia aos soldados como «filhos da pátria» ou «nossos rapazes», dando a entender que qualquer jovem que luta pelo império também é nosso filho."
(...)
"Teria preferido travar esta batalha na nossa sala. Ali ter-me-ia apoiado na visão dos livros. Cada lombada emite uma luz que compreendo claramente. (...) Ter-me-ia deixado aconselhar por Séneca. Ele ter-me-ia apaziguado. Ali, com os nossos licores, sob as madeiras talhadas do teto, teria dominado este homem irritante."

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Um livro Marcador, uma chancela do Grupo Editorial Presença

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