quarta-feira, 25 de julho de 2018

«O Executor» de Lars Kepler :: Opinião


A saga continua! Serão oito volumes e eu ainda tenho mais seis para me imiscuir no passado do detective Joona Linna. Em entrevista, a propósito de «O Executor» os autores referem o papel do passado, a profundidade dos assuntos e o compromisso com a leitura viciante. E neste vamos encontrar um tema polémico: a exportação de armas, os contratos entre governos e um dos negócios mais antigos do mundo, o tráfico.

Neste volume, o motivo que se aponta para as mortes está relacionado com o comercio ilegal de armas para zonas em conflito, países arrasados pela guerra e para os quais as leis internacionais proíbem exportar material bélico. Claro está, isso não se cumpre. É explorando esses contractos ilegais, esses pactos com o diabo, um negócio do qual nunca se sai ileso, que vamos seguindo viciados neste enredo e percebemos que a activista e pacifista Penélope Fernández é um alvo a abater. 

Este livro é também detalhado e muito completo para elucidar o leitor para a perícia com que os crimes podem ser executados, especialmente a forma como se suspeita do suicídio/assassinato de Carl Palmcrona. E isso é muito interessante.
Outro detalhe é como remete ao passado de diversos personagens para justificar as suas acções, traumas e preconceitos. Um dos que mais gostei foi de Saga Bauer e até nisso os autores estão atentos à actualidade e; como critica social descrevem as mulheres sempre em maior esforço e maior investimento para que lhes sejam valorizadas as suas competências, mostrando que os nórdicos também ainda têm ainda um caminho a percorrer no que respeita à igualdade de géneros. 

O drama dos refugiados, igualmente actual, também está presente neste volume, mais precisamente o drama do Darfur, as minorias étnicas e os massacres. E é bastante curioso que uma personagem como Penélope, com o passado de clausura que teve, ter como objectivo de vida estas missões humanitárias.

Melhor ainda é a correlação estabelecida ao longo de toda a história com a música e o compositor e violinista Niccolò Paganini. Uma obsessão que leva a um enredo paralelo (que daria bem um outro livro) e que ajudará a resolver os crimes. E com isto não estou a dar qualquer spoiler ;)

"O andamento é subitamente vertiginoso, prestíssimo. É divertido e belo e, ao mesmo tempo, entrecortado por repentinas mudanças de cordas e saltos arriscados entre as oitavas."

Tal como o livro da dupla Kepler!

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Com este livro surge a referência para outro, um que uma das personagens lê: «O acidente» de Friedrich Dürrenmatt

sexta-feira, 20 de julho de 2018

«Fahrenheit 451» de Ray Bradbury - Opinião


Em 1953 o livro de Ray Bradbury foi publicado como um manifesto contra a censura e traçava um cenário diabólico, que à época parecia absurdo. Era afinal um aviso. O seu tom era premonitório e hoje choca pela semelhança com a realidade que temos, numa sociedade tão virada para os ecrãs e em constante estupidificação. 
O alerta era para a massificação da televisão e que as pessoas não estavam a perceber o quanto isso as tornava imbecis e desinteressadas do que realmente as rodeava. E pior é ver que mais de cinquenta anos depois a massificação continua e o cidadão vai empalidecendo atrás dos diversos tipos de ecrãs.
No entanto,  «Fahrenheit 451» é, acima de tudo, uma saga, uma viagem de redenção. Há uma reviravolta e uma conversão que ainda é possível: "vagabundos por fora e bibliotecas por dentro".

Da fogueira até aos homens-livro, conhecemos a reviravolta na cabeça de Montag, o bombeiro que incendeia livros: essas ameaças de luz aos cidadãos cinzentos, viciados em ecrãs e comprimidos. 
O prazer com que Montag exercia a sua profissão/missão é assustadora e percebe-se que é uma referência ligada ao passado recente de uma Europa entregue aos totalitarismos. A critica social é feroz e um espelho do que tem vindo a acontecer até aos dias de hoje:

"Depois, o cinema no início do século XX. A rádio. A televisão. As coisas começaram a ser em massa.
Montag permaneceu sentado, imóvel.
- E porque possuíam massa, tornaram-se mais simples. Outrora, os livros atraíram algumas pessoas, aqui e ali, um pouco por todo o lado. Pessoas que podiam dar-se ao luxo de serem diferentes. Havia espaço para isso no mundo. Mas depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos e de bocas. A população duplicou, triplicou. Os filmes e a rádio, as revistas, os livros foram ficando todos ao mesmo nível, uma espécie de pudim pastoso (...)
- (...) Os livros ficam mais curtos. Condensações. Resumos. Tabloides. Tudo se orienta para a piada, o fim abrupto.
(...) Tudo digerido, resumido, digerido-resumido. Política? Uma coluna, duas frases, um título! E depois, tudo desaparece! A mente dos homens anda a tal velocidade neste carrossel movido pelas mãos dos editores, exploradores e radiodifusores que, nesse movimento centrífugo, se perde tudo o que seja pensamento, considerado desnecessário, uma perda de tempo!"

Até nesta digestão acelerada e ao sabor de interesses comerciais, este livro se aproxima dos dias de hoje. Cada avanço na narrativa quer chamar à atenção para o poder dos livros e da necessidade de abandonar a máscara social e a vida ao sabor de modas e tendências. Se actualmente "ser diferente" está na moda, a pergunta que fica é se essa diferença é genuína ou simplesmente provocada para uma integração no modelo ditado pelas maiorias. 

«Fahrenheit 451»  é um grito contra o status quo, é um abanão, abana a árvore e deita abaixo essa preguiça... a preguiça de questionar, de pensar. A sociedade distópica aqui relatada não questiona, não tem curiosidades, todos são egoístas e niilistas, aborrecidos e irresponsáveis. Controlam a raiva através de divertimentos tão bizarros e impunes como ir atropelar pessoas. Os livros aqui são símbolos para o livre pensamento, através do acto de ler, pensar, questionar e em última estância, criar e evoluir.

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Uma edição SDE | Saída de Emergência


«O Hipnotista» - Lars Kepler :: Opinião


Publicado em 2010 pela Porto Editora, «O Hipnotista» inicia a saga do detective Joona Linna pela mão da dupla Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril, o casal por detrás do muito aclamado pseudónimo: Lars Kepler.
Aquando da publicação do último volume, «O Caçador», cujo a sinopse me cativou bastante, decidi-me a começar esta longa saga e ficar a conhecer esta dupla, donos de enredos psicológicos e sangrentos. 

«O Hipnotista» parte do mito grego, do deus Hipnos, cujo o nome significa «sono». Hipnos é irmão gémeo da morte e filho da noite da escuridão. Mas indica também que a hipnose remonta à medicina com a data de 1843, como um estado próximo do sono e, ao mesmo tempo, de extrema atenção e grande recetividade. 
Será com esta ambivalência que o leitor se depara durante todo o livro até perceber os motivos do crime inicial e de outros que são descobertos mais tarde. 

Também hipnotizado, o leitor segue com Erik Maria Bark, no frio anestesiante de uma noite nevada e desde logo se percebe que o hipnotista irá ceder e quebrar a promessa. Uma família foi violentamente assassinada, esquartejados, corpos despedaçados pela casa fora, uma carnificina digna de ajustes de contas entre cartéis de droga. 
Bark aceita a sugestão de Daniela e voltará a hipnotizar, mas com resultados que poderão entrar em conflito com o desenrolar da investigação a cargo de Joona Linna, ou pelo menos ele assim decide. Teimoso e persistente, Linna persegue uma investigação de contornos alucinantes, nomeadamente o rapaz que, vítima de inúmeras facadas, se encontrava vivo, contrariamente ao que era suposto.

"O comissário pensa na palavra sueca para «autópsia», obduktion, que vem do latim e que significa, originalmente, «cobrir, ocultar, envolver», quando, na realidade, o que se faz durante esse processo é precisamente o contrário."

Tal como numa investigação, recorra ela a um passado recente ou a um já bem enterrado.
O passado, tão útil a ocultar dramas, mas não a sarar feridas; vive precisamente disso: cobrir, ocultar, envolver e, influenciar o presente. Especialmente quando ocorre o rapto de Benjamin, filho de Erik Bark. É por certo o passado a persegui-lo!

"«O passado não está morto. O passado nem sequer passou», citando o escritor William Faulkner, referia-me a que cada pequena coisa que acontece a um ser humano o acompanha até ao presente. Todas as vivências influenciam (...) tratando-se de experiências traumáticas, o passado passa a ocupar todo o espaço do presente."

É precisamente dessas experiências traumáticas que a dupla Kepler se alimenta para tecer um thriller psicológico intenso e viciante, fazendo o leitor querer logo pegar no volume seguinte: «O Executor» de tão boa que é esta estreia.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

«O Bom Inverno» de João Tordo - Opinião


Frustrado, cínico e hipocondríaco, o narrador: um escritor entregue à melancolia e a um certo ócio, está descrente do poder da literatura. Céptico com o poder dos livros e das suas histórias e, igualmente pessimista com o que a realidade tem para lhe oferecer.

"Se antes eu era um pessimista, depois de comprar a bengala passei a ser um cínico. Um homem novo com uma bengala podia dar-se ao luxo de desprezar o mundo e, assim sendo, eu tencionava aproveitar a oportunidade para ajustar contas com a realidade."

Apoiado na bengala recentemente adquirida, o narrador escritor larga o conforto anestesiante do seu apartamento e segue em direcção a um enigma oferecido por Vincenzo e um grupo de jovens escritores com quem se encontra numa palestra internacional. 

"«Sabes o que é curioso?», perguntei, sorrindo, embora sem grande vontade, «Eu, no que diz respeito à literatura, regredi. (...)
Nina pensou durante uns momentos.
«(...) cada vez mais acredito que só vale a pena ler um romance (...) quando temos uma pergunta na cabeça para a qual não sabemos a resposta. Ou, mesmo que tenhamos encontrado a resposta, se precisarmos de confirmação.»
Fiquei intrigado. Pedi-lhe nova explicação.
«Pensa bem: o mesmo se aplica a escrever livros, ou não? Não será o escritor, verdadeiramente, o único interessado naquilo que escreve? Quero dizer, porquê andar a inventar histórias a torto e a direito, a menos que essas histórias sejam a solução, temporária ou absoluta, para um enigma qualquer?»
«Todos temos enigmas por decifrar», repliquei. «No entanto, nem todos lemos ficção. E somos ainda menos os que a escrevemos.»
«Justamente», respondeu Nina. «Porque pessoas diferentes encontram as respostas em lugares diferentes (...)»
«Ao mesmo tempo é uma forma de cobardia», respondi (...)
«Pois é», (...) «Os escritores, no fundo, são todos uns cobardes.»
Fiquei sem resposta..."

Com alguma cobardia e sem grande determinação, o destino é a idílica Itália, com o objectivo de conhecer uma prometedora sumidade do cinema e das artes em geral, Don Metzger e usufruir de uma temporada de Verão na sua casa com a promessa de algumas peripécias e acontecimentos inesperados.

"Sabaudia é um lugar estranho, que cai algures entre o cinema realista italiano aprovado por Vittorio Mussolini, filho do grande ditador, e o melhor surrealismo de Fellini. Difícil de explicar. A cidade foi mandada construir por Mussolini em cima de uma vasta extensão de pântanos drenados (...)
«Um lugar bizarro»"

E num lugar bizarro espera-se que aconteçam coisas igualmente bizarras. Vicenzo esperava-o e silenciosamente o escritor desesperançado também, nem que fosse alguma curiosidade que Nina despertava nele para um ajuste de contas com a realidade. Juntos rapidamente se vêem enredados num crime, uma morte seguida de outra, como num jogo viciado ou envolvido nos meandros da máfia. 

"Cauteloso era um eufemismo para aquilo que eu me tornara; na verdade, eu desistira, permitindo que a indiferença vencesse. 
Ajustar contas com a realidade escusando-me de existir, e um homem que se escusa voluntariamente a existir sucumbiu ao apelo da fraqueza, ou da cobardia, ou da ausência (...)"

Um homem que se escusa voluntariamente a existir, mas que mesmo assim seguiu aquele grupo, embora coxo, deprimido e cansado, não é homem para abandonar tudo por completo. É sim um cínico, um escritor camuflado na lentidão da bengala, na soberba de captar os melhores detalhes para um enredo refinado e primoroso como os balões de ar quente que dão pano de fundo a esta narrativa, juntamente com a voluptuosidade de um bom inverno e o misticismo da floresta.

"O Verão instalou-se na sua grandeza e também na sua miséria. A noção de que pouco havia a fazer naquele momento infundiu nas almas uma entranha apatia e, ao mesmo tempo, de uma urgência em regressar ao quotidiano (...) e partilhavam-no com quem quer que se encontrasse por ali (...) e os seus silêncios eram longos, melancólicos e pesados."

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Desde «A biografia involuntária dos amantes» que um livro do Tordo não me prendia tanto ao enredo e ao narrador. Há como que uma salvação pessoal apegada à salvação dos outros, sempre voluntariamente disfarçada, um pouco cobarde, um tanto cínica, numa procura constante pelas miudezas que dão sentido à vida.

«O desaparecimento de Stephanie Mailer» de Joël Dicker - Opinião



Sou fã de Dicker!
O suiço cria enredos que mais parecem redes velhas de pesca. Embaraçadas em nós antigos, presos por restos de muitas outras pescarias das quais já ninguém se lembra. Depois, numa madrugada em que o mar está de feição, alguém se lembra de desenovelar essas velhas redes e lançar-se a novas descobertas.
O leitor tem assim um papel de mexilhão, fixa-se como pode, agarrando-se aos detalhes, tentado compreender o fluxo da maré.

«O desaparecimento de Stephanie Mailer» é um livro puzzle como «A verdade sobre o caso de Harry Quebert» mas que a meu ver não supera nem se iguala a esse. Os livros estão dentro de livros , a investigação chega a ser incauta ou pessoal mais do que detetivesca, o amor move sempre a maioria dos personagens, mas a forma como este último é montado não se torna tão viciante como o primeiro, e nem cumpre a máxima: "Um bom livro, Marcus, é um livro que lamentamos ter acabado de ler."

Talvez a expectativa fosse muito elevada ou então é a minha exigência. O que sei é que não me fixei tanto nas personagens e senti semelhanças com outros enredos ou dei por mim a divagar para outros cenários. Houve personagens ou situações que me lembraram a série «Fargo»,a falsidade de certas personagens levou-me a pensar em «Big Litle Lies», o cenário, Orphea, cansou-me pela sua superficialidade.

No entanto, o livro tem tudo: os capítulos incisivos e que alimentam o ritmo de leitura, o enredo que se adensa, as peripécias, os supostos deslizes dos personagens para o leitor achar que já sabe quem matou quem, o lado de farsa daquela camada social, o critico azedo, a jornalista e a detective que querem singrar como profissionais reconhecidas, um pouco daquele charme do policia bom e do policia mau... e claro está, um erro que pode pôr em causa mais de vinte anos de uma carreira bem sucedida. Mas falta-lhe qualquer coisa e creio que desta vez os detalhes, as histórias de tantas personagens acabam por distrair ou talvez até cansar o leitor, que quer ver uma justificação para tantos enredos dentro do enredo e sai um pouco frustrado pela colagem final.
É muito mais uma série de mal entendidos, acasos infelizes e amores assolapados do que mentes argutas e frias que arquitectam um crime perfeito.

Repito sou fã do autor, li os seus quatro livros, o meu favorito é o que foge ao ambiente de thriller, «Os Últimos Dias dos Nossos Pais» é um livro de extrema beleza, essencialmente pelo lado humano e a forma como descreve as relações que superam o ambiente de guerra. Este último, definitivamente, não me convenceu.

sábado, 14 de julho de 2018

«Morrer com dignidade – a decisão de cada um» - Opinião


O livro "Morrer com dignidade: a decisão de cada um", da autoria do movimento cívico Direito a Morrer com Dignidade e organizado pelo médico e político João Semedo (coautor de «Salvar o SNS», Porto Editora 2017), pretende esclarecer e informar sobre a despenalização da Morte Assistida. O livro inclui testemunhos de personalidades públicas e textos que abordam as questões fundamentais sobre a morte assistida e ainda apontamentos de foro jurídico sobre os projectos de lei que visam a despenalização na ajuda à morte. 
Seja apelidada de eutanásia, suicídio assistido ou morte assistida, tudo são termos para obter ajuda a morrer de forma legal e sem consequências para quem ajuda, nomeadamente familiares. O tema já não é novo no debate nacional e é dos que mais tempo tem sido alvo de debates e criticas ferozes, mas ainda assim, muito há ainda que debater e esclarecer, para que exista uma maior aceitação pela escolha de cada um.
"A despenalização da morte assistida é a mais humanitária e democrática opção que podemos aprovar para o final da vida: ninguém é obrigado e ninguém é impedido, o único critério é a escolha de cada um."

E é nessa possibilidade de escolha que reside ou que devia residir a democracia actual, permitindo a actuação em liberdade e responsabilidade, tanto de quem pede para ser ajudado a morrer, como quem pode e tem meios para ajudar. A relação médico-doente tem sido igual e amplamente debatida e muito se tem discutido sobre a missão dos médicos, mas também sobre a forma paternalista como se olha à pessoa doente.

"Nós somos seres para a morte. Sabemo-lo desde que nascemos (...) É «humano» e - como dizia Ter~encio - nada do que é humano nos é estranho. Então porquê considerar uma aceitação do fim, um planear do fim, como um transtorno da razão? Se a doença altera o nosso estado de espírito não nos estupidifica necessariamente. Nem nos obriga a suportar um sofrimento indizível. A doença pode dar-nos uma consciência renovada sobre a nossa finitude (...)
Deverá o médico consolar? Sim, (...) mas respeitando criteriosamente a racionalidade interna do seu doente (...) Pois o médico não tem de ser um dador de sentido. Tem de ser um respeitador dos sentidos."

Laura Ferreira Alves («Ajudas-me a morrer?», Sextante 2009) fala do fim da vida em sofrimento como uma tortura e é no sentido de acabar com essa tortura que se apela ao direito da liberdade individual de escolha em antecipar o fim dessa mesma vida. No entanto, a deliberação a favor da despenalização continua a protelar e a apelar, ou a apoiar-se, nos cuidados paliativos, que sabemos serem bastante fracos no nosso país e daí o constante alerta: "morre-se mal em Portugal". A degradação lenta e penosa da pessoa perante a doença é o principal fundamento para se exigir ao direito a uma morte digna e livre do peso da clandestinidade.



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