quarta-feira, 31 de outubro de 2018

«ABC da Poupança» de Ana C. Bravo - Opinião


"Poupar não é necessariamente uma medida SOS (...) A frugalidade é uma forma de consciência expandida, de percebermos que, no fundo, o verbo «ser» é muito diferente do verbo «ter»..."

Poupar ainda é tabu ou sinónimo de fragilidade? Ou mais além, de falhanço?
A frugalidade está na moda ou é uma tomada de consciência para evitar o esbanjamento?

A frugalidade é igualmente vista como uma qualidade de quem é prudente no uso e consumo de recursos como: alimentos, objectos, tempo, dinheiro ou bens em geral. É uma postura de consciência comportamental que visa proteger e gerir estrategicamente recursos e seus hábitos de consumo e de preocupação a longo prazo com a sustentabilidade.

Assim, esta filosofia de poupança usa um sistema sustentado por resultados, não de satisfação ou gratificação imediata, mas de contenção, opta por soluções de consumo com baixo custo e de cultura comunitária e local, daí a ligação entre: organização financeira, reciclagem, produtos locais, sustentabilidade e por sua vez «felicidade e paz financeira».

Este livro ajuda-o a engendrar um plano de poupança que vise atingir a meta: «É preciso tão pouco para viver bem." Por isso, dê o benefício da dúvida e siga alguns do conselhos de literacia financeira e treino de previdência:

-"Orçamentar é sinónimo de poupar..." e para tal precisa de saber, ao detalhe, todas as suas despesas, anote tudo ou guarde os talões.
- Divida as despesas por rubricas: supermercado; casa; tabaco; gasóleo... e depois pergunte-se:
              - Tenho hábitos que podem ser mudados?
              - Faço despesas desnecessárias? Preciso mesmo de tudo o que compro regularmente?
              - Onde consigo melhorar?
- Seja pragmático e realista. Estabeleça limites!
- Programe-se para poupar 10% do seu rendimento.

Atenção: 10% é um bom ponto de partida, um valor facilmente suportado pela nossa cabeça. Vá ao banco e estabeleça uma transferência automática de 10% do seu salário. É uma ajuda que dá a si mesmo. Não se desfalque!

Nota importante: não se esqueça que a rubrica "Carro/combustível", inclui muitas outras despesas, são exemplos: seguro, IUC, revisão anual, óleo, filtros, pneus, inspecção, escovas de pára-brisas, lavagens...
Aqui o cálculo deve ser pensado de forma anual, para depois ser dividido pelos 12 meses do ano, e assim, poderá pôr de parte para despesas maiores e de periodicidade anual.

Outra nota importante: a sua poupança de 10% por mês e o reembolso do IRS (caso receba) são boas quantias para criar um fundo de previdência, digamos um mealheiro. As emergências e imprevistos são um facto e exigem fundo de maneio.

O livro de Ana C. Bravo tem uma parte introdutória para orçamentar, depois, mais especificamente, apresenta nove áreas em que dá dicas de poupança, desde as compras do dia a dia aos filhos e à gestão do lar, sem esquece férias ou remédios caseiros.
Basta escolher aquelas em que mais lhe "dói" e aplicar o devido curativo.

De entre as centenas de dicas, deixo algumas mais capazes de gerar falatório.

- Leve dinheiro para pagar as compras/evite cartões e créditos

- Ande a pé, por desporto, por hábito ou como meio de transporte

- Esqueça o "standby" e poupe 25% na factura da luz

- Se for jantar fora, partilhe a sobremesa

- Use a areia da praia para a exfoliação corporal, fora dessa época, use açucar mascavado no seu gel de banho

- Leia um bom livro sobre remédios caseiros e aprenda a usá-los

- Conheça a escova que lava os dentes sem pasta: procure por Soladey


Vocês não vai ficar rico com estas estratégias, mas pode desafogar-se e ficar mais organizado, em casa e na carteira! E vai também contribuir para a saúde do planeta.

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Uma leitura com o apoio blogueiro do Estante de Livros

domingo, 28 de outubro de 2018

Opinião "O Prédio das Mulheres Que Desistiram dos Homens"

Para uma total mudança de perspectiva nas tramas que são as relações amorosas entre homens e mulheres, vamos falar de um livro em que as mulheres, por desgosto ou fastio, excluíram os homens da sua vida. Ou pelo menos assim o parece. 


 Quando umas das inquilidas deste prédio exclusivamente feminino decide partir para uma aventura no outro lado do mundo, deixa vazio um andar que rapidamente é ocupado por Juliette, a nossa protagonista. A mais jovem de todas as intervenientes desta história, Juliette, a quem as regras do prédio foram ditadas à priori, alberga uma mente que saltita, ainda que secretamente, como uma bobine solta por pensamentos de sons, cheiros e coxas masculinas. O seu desejo por amor e aceitação, algo que nunca teve ao longo da sua vida, é um segredo que guarda bem longe das suas novas vizinhas e amigas. 

 Giuseppina, a Siciliana, o único tentáculo num polvo forte composto por homens rigidos, que sempre viveu um vida ditada pela virtude e o serviço à família. 
Rosalie, a ex mulher moderna e metade da dupla "Rosalie e François" até ao dia em que ele saiu para comprar tabaco e nunca mais voltou tal era o medo do compromisso e da mini van com um banco de trás repleto de putos aos gritos. 
 Simone, outrora uma filha do campo, conta com uma surpreendente aventura por terras sul americanas que a fizeram voltar à pátria com um filho nos braços, conta agora com um ninho vazio, povoado apenas pelo odor dos seus cozinhados, a presença calmante da sua planta de cannabis e o ronronar de Jean Pierre, o único macho autorizado a meter a pata no imóvel. 
Quem ditou as regras foi a Rainha, dona do edificio e de uma aristrocracia intemporal de quem em tempos foi adorada em palco mas infeliz no amor. Foi o italiano que lhe quebrou o coração que a presenteou com o prédio em que hoje estas mulheres, que renegaram os homens das suas vidas, habitam num pacato pátio no 20º arrondisement parisiense. ​

"Então porque desististe? 
Não desisti dos homens. Desisti, sim, de sofrer. 
... 
A formação de um casal não é a única resposta à pergunta "como ser feliz?"​ 

 Um romance fora do vulgar, que me fez sorrir pelos momentos em que eu própria já pensei se não haveria um andar para mim neste prédio. 
Uma leitura curtinha e que nos pensar se estamos a renunciar o amor ou apenas o sofrimento.


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

«Departamento de Especulações» de Jenny Offill :: Opinião


"O que disse Ovídio: Se alguma vez fores apanhado, por muito bem que escondas, / Mesmo que seja numa noite clara, jura e rejura que é mentira. / Não te mostres demasiado servil, nem mais atencioso do que é devido, / pois com isso apenas lograrias afiançar a tua culpa. / Esgota-te se for necessário e demonstra na cama dela / que não poderias ser tão bom se acabasses de vir da cama de outra."

*

"Departamento de Especulações", de Jenny Offill, (Relógio de Água, 2015) é um livro arrebatador. E ao mesmo tempo uma chapada em diversos tons e de difíceis contornos. Ou seja, nem sempre percebemos se as palavras nos apanham em cheio, como os cinco dedos de uma mão ou se é apenas, um indicador esticado que nos cutuca o nariz, em jeito de empurrão mais subtil. 

O que é certo é que Offill não escreve sobre nada de novo: um homem, uma mulher, casam e fazem bebés, um dia o homem cansa-se ou sabe-se lá o quê, traia a mulher e a ela, tipicamente como é esperado, dispara em especulações, emoções, divagações e (talvez) separações. 

Simples básico banal. 
Nada mais errado! E é isso que faz do departamento de Jenny um departamento sem igual nesta empresa compartimentada que é a vida a dois.  

"A vida é igual a estrutura mais actividade."

"Os budistas dizem que há 121 estados de consciência. Desses, só três envolvem angústia ou sofrimento. A maior parte de nós passa o tempo a circular entre esses três estados."

Se a estrutura está em risco e a actividade é torturante, minada pelos círculos de angústia e de sofrimento, daí só poderia resultar uma narração conturbada, híbrida e fragmentária, de onde sobressai uma mulher que procura entender, sentir e se abrir ao que a vida tem, agora, para lhe oferecer.

"A invenção do barca representa também a invenção do naufrágio"

"Até ao século XVII, era geralmente admitido que os ímanes possuíam alma. De que outro modo podia um objecto atrair e repeli?" 


Com quantos sinónimos e de quantos antónimos se faz uma relação?
Atracção/traição. Amor/paixão. Cumplicidade/solidão. Desejo/ sexo. Intimidade/repulsa.
Há de tudo no inventário de Jenny Offill. Mas de tudo mesmo, abrindo assim o leque de pessoas que pode atingir. E atinge de certeza.

"O que disse Simone Weil: A atenção sem objecto é uma forma de oração superior."

"Uma experiência mental, proposta pelos estóicos. Se estás farto de tudo o que tens, imagina que o perdeste."

É difícil definir, é extremamente complexo de explicar, pois não é só de sentimentos, de desgosto ou desapego, da maternidade ou da complexidade da vida a dois, todo o livro é digno de ler e reler, de pensar nos diversos caminhos que nos aponta... até na profissão a narradora nos surpreende, ela aceita ser ghostwriter de um "quase astronauta" russo. 

"Minha Vera, Tua Mãe Já Sabe Usar Naftalina. É a mnemónica que lhe deram para recordar a ordem dos planetas."

Com uma separação digna de quem habita outro planeta, a esposa vai narrando e, ora se afasta, ora se aproxima, como se tivesse ao seu dispor um zoom que procura calibrar. 
Ela quer compreender, ela quer aceitar. Especula ensinamentos, palavras alheias, compara-se aos outros e olha para si, para ele, para o "nos". Há até quem diga que este livro é uma ode ao casamento.

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Opinião "Longe do Paraíso"

"Eu sou o sonho americano, do esperma em cheio na cara.
Sou rica.
Como um rapper. Com um homem de negócios.
A conta bancária do Donald Trump e a boca do Pato Donald"


A história de Mona não é fácil de engolir mas é interessante de ser ler. Uma viagem nua e crua sobre a mente humana que vive viciada no dinheiro e no sucesso fácil e sobre a indústria do sexo que fiel a si mesma continua o Olimpo aos olhos de uns e desprezível aos olhos e outros.

Mona, Kim, Holly...
Seja qual for o nome e o momento em que o adopta, ela é apenas uma adolescente que vive no vazio dos dias, a usar o corpo em proveito dos seus interesses, a trocar ilusões carnais por uma chance de seguir caminho rumo ao futuro que anseia para si.
Se o modo como chega à industria da pornografia é calculado ao mais ínfimo detalhe, espezinhando tudo o que encontra pelo caminho, a sua ascensão a estrela porno de renome não é desprovida de momentos que nos revoltam o estômago, quer pelo que ela faz, pelo que é e no que se torna.
Não que me ofenda o facto de ela ser actriz porno, nem de longe, mas apenas acho que "Longe do Paraíso" está exactamente assim, longe de ser uma leitura fácil e que me tenha agradado na totalidade. É interessante sim mas não o consigo ver como uma narrativa sedutora, talvez porque continue a achar que a industria porno é feita para os homens e não para as mulheres, muito menos as que nela trabalham.
Bem, talvez "Longe do Paraíso" só não seja uma leitura para mim.
Numa coisa tenho de dar a mão à palmatória, a descrição de certos momentos, especialmente quando contados pelo olhar vazio e mente calculista de Mona, cuja fome de riqueza à custa de tudo e todos a motiva a atalhar das piores maneiras rumo a uma conta bancária recheada é simplesmente arrepiante.

Mas não é esse o American Dream?
O sucesso e a riqueza?! 
O problema é o custo que lhes é cobrado.

Um livro 



I'm your National Anthem, boy put your hands up, give me a standing ovation
Boy you have landed, babe in the land of, sweetness and danger...

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Opinião "Um homem chamado Ove"

Se eu fosse uma pessoa normal e que leva as coisas sempre com o mesmo ritmo, tinha pegado num papel e caneta ou então aberto um nota no meu telemóvel para escrever a minha opinião a este livro assim que terminei a sua leitura a 29 de Agosto mas como estava de férias não me dei ao trabalho e só publiquei uma foto no insta com esta mensagem:

"Adorei este livro 🙂 que personagem!! Cheguei ao final completamente rendida à personalidade e história da vida de Ove e foi com pesar que fechei o livro."

A Elsa de Outubro pergunta "E agora?"
E posso responder o seguinte:

Desde que li a sinopse de "Um homem chamado Ove" que sabia que ia gostar de ler o livro de Fredrik Backman. Tenho uma certa queda para pessoas rabugentas e Ove é sem dúvida uma pessoa rabugenta, ou pelo menos é essa a impressão que passa a toda a gente.
Ove vive numa bairro simpático que em tempos foi habitado por suecos de respeito como é o seu caso e o da sua mulher Sonja mas desde que este foi crescendo tem vindo a aceitar pessoas que não se interessam por nada, especialmente pelas regras do bairro. Ove é um homem respeitador das regras, talvez por isso toda a gente o ache um velho chato que está sempre a reclamar com tudo e todos mas na realidade, Ove é apenas um homem sozinho, especialmente desde que Sonja morreu e o trabalho já não tem lugar para um homem da sua idade.
Determinado em acabar com a sua vida, são incontáveis a vezes em que vê os seus planos cuidadosamente delineados serem adiados, especialmente pelos seus vizinhos mais recentes, que ele "afectuosamente" chama de Mulher Grávida Estrangeira, o seu marido esgalgado e as suas duas miúdas.
E sem querer, Ove é puxado para os dramas desta jovem família, para os desvarios amorosos de um miúdo que quer conquistar alguém com uma bicicleta, para a responsabilidade de partilhar a habituação com um gato ameaçado de morte e para o facto dos serviços sociais estarem prontos para levar para um lar um homem que em tempo Ove chamou de amigo, pelo menos até ele trocar o seu Volvo (o segundo carro aceitável para um homem decente ter, porque o primeiro é e sempre será um SAAB) por um BMW.

Divertido, tocante e capaz de nos arrancar umas quantas lágrimas lá para o final por estarmos tão apegados à integridade e ao coração gigante de Ove, "Um homem chamado Ove" é uma magnífica leitura e acho que todos temos a aprender grandes lições com este Senhor com S maiúsculo, uma prova que já não se fazem pessoas como antigamente mas que se nos esforçarmos podemos ser dignos da mesma admiração. E epah, eu não conduzo um SAAB mas sim um Volkswagen e digo, para mim é sempre um ponto positivo ver que alguém escolheu a mesma marca de carro que eu, é quase uma validação, algo que acontece quando vejo alguém a ler. :)

Mas o melhor do livro...a história de Ove e Sonja :) 

Agora quero ver o filme. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Opinião "O Rapaz à Porta"

A perfeição sempre me aborreceu mas garantidamente a vida certinha e espectacular Cecilia Wilborg revelou-se tudo menos aborrecida.

Conhecemos Cecilia como uma daquelas mulheres que só de olhar para ela se torna cansativo. Sempre primorosamente arranjada e composta, Cecilia tem a dose certa de tudo. Desde o marido atraente e que toda a gente queria caçar às duas filhas lindas e fofinhas, desde o casarão com vista para o porto de Sandefjord ao trabalho como decoradora freelancer que lhe garante ocupação e "independência" na sua posição de mulher moderna.
Como ela bem diz "tudo o que a Cecilia quer, a Cecilia tem".
No entanto, toda esta fachada foi polida de modo a esconder as imperfeições, as gaffes, os problemas e os erros do passado que podiam manchar a vida perfeita da família Wilborg mas principalmente de Cecilia.
E a primeira frecha abre-se quando, como que caído do céu, Tobias vem parar à vida de Cecília e da sua família.
Mas seria esta a primeira frecha ou apenas a que vai fazer tudo se desmoronar?

Alguém se esqueceu de ir buscar Tobias à aula de natação e devido à sua boa reputação em Sandenfjord e por ter sido a última a sair da piscina, coube a Cecilia leva-lo a casa onde chegou à conclusão que o local estava deserto e não havia sequer indícios de lá viver alguém.
Ressentida com a responsabilidade de tomar conta de um miúdo que pouco ou nada falou desde que estava consigo, Cecilia levou-o para casa só com o objectivo de se desenvencilhar dele no dia seguinte na escola mas surpresa surpresa, também aí ele não era esperado ou conhecido e é aí que a coisa começa a complicar.
Onde estão os pais desta criança?
Se não vive naquela casa, vive onde?
Porque Tobias não fala e quase parece um sombra a mover-se na escuridão?

Com a estadia de Tobias em casa dos Wilborg, a pedido do serviço de assistência social e contra vontade de Cecilia, começamos a perceber que a fachada polida que ficamos a conhecer tem rachas e bastante profundas, que Cecilia não é nem de longe um amor de pessoa, que alberga nela uma escuridão bastante profunda e capaz de destruir tudo à sua volta, a começar por si mesma.A sua bitchiness, desculpem a falta de expressão em Português, tem momentos que são tão espectaculares como repugnantes e quantos mais abalos sofre no seu dia a dia, maior é a sua instabilidade e acreditem, a coisa vai de mal a pior em meia dúzia de páginas.

E à medida que vamos avançando ficamos igualmente a conhecer pedaços da história pelos olhos de Tobias e Annika. Sim, Cecilia pode ser a grande peça do puzzle mas foi Annika que me prendeu à história, mesmo que inicialmente começasse por a desprezar, pouco a pouco mostrou um lado tão humano e credível que se tornou, pelo menos para mim, na melhor personagem deste livro. Não vos vos explicar quem é a Annika, vou convidar-vos a ler o livro. Acreditem, merece a pena só para ficar a conhecer Annika e Cecília, especialmente esta última que com a sua arrogância e altivez fez-me pensar em todas as razões porque não almejo a perfeição e por me afasto de pessoas que fazem da ostentação, superioridade e rebaixamento do outro uma actividade diária.

É curioso como tinha a certeza sobre o destino desta história desde que li a sinopse mas foi interessante ver a narrativa dar-me a volta, levar-me a acreditar que aquilo que bati o pé desde o primeiro momento não era o que a história me estava a oferecer, só para no fim ficar de queixo caído quando se sabe a verdade e ela é ainda pior do que estávamos à espera.
Fiquei sem dúvida rendida à história de Cecilia, Tobias e Annika e também à escrita de Alex Dahl.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

«COMBOIO PARA O PAQUISTÃO» de Khushwant Singh - Opinião


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Khushwant Singh (1915-2014) foi advogado, diplomata, jornalista, político e um dos grandes escritores indianos ou não fosse amplamente conhecido por expor a partição da Índia em 1947, com a separação do Paquistão e a saída dos ingleses. A polémica em torno das suas opiniões valeram-lhe ser banido e ter a cabeça a prémio, no entanto, nunca abandonou o seu país nem a cultura Sikh. 

A partição de 1947 ainda hoje tem repercussões bem com as diferenças entre sikhs e hindus e claro, muçulmanos, uma maioria essencialmente em território paquistanês. Tais diferenças enraizadas contribuem para maiores divisões e discriminação entre indianos em geral. O romance expõe ainda as fissuras deixadas pelas linhas fronteiriças traçadas conforme os interesses ingleses, causadores de fricções e desconfianças entre um povo separado por clivagens sociais e tradições religiosas. A proximidade geográfico não apazigua diferenças incrementadas ao longo de séculos, e isso o livro também denuncia. 

"«A liberdade tem de ser uma coisa boa. Mas nós, o que é que vamos ganhar com isso? As pessoas instruídas (...) hão-de ficar com os empregos que os ingleses tinham. Mas nós, vamos ganhar mais terra ou mais búfalos?»
«Não», continuou o muçulmano. «A liberdade é para os instruídos que lutaram por ela. Nós fomos escravos dos ingleses, agora vamos ser escravos dos indianos instruídos - ou dos paquistaneses.»"

«Comboio para o Paquistão» expõe também a questão da violência e da matança que existiu fruto de todas essas discórdias, e na aldeia de Mano Majra onde a população, apesar das diferenças, vivia em consonância, vê essa linha de paz, ténue e frágil, facilmente ameaçada quando ordas de migrantes oscilam entre comboios apinhados de gente: muçulmanos que fogem em direcção ao Paquistão e sikhs e hindus que fogem em direcção à restante Índia.
A aldeia, situada junto à ferrovia, passa a ser testemunha da violência extrema que pautou este episódio da História da Índia.

“Desde a partição do país, esta discussão tinha um interesse adicional (...) Agora, os comboios (...) Quando vinham, estavam apinhados de refugiados sikhs e hindus vindos do Paquistão, ou muçulmanos vindos da Índia. As pessoas vinham empoleiradas nos tejadilhos com as pernas balançando na borda, ou em armações de cama apertadas entre os vagões. Algumas vinham precariamente cavalgando os amortecedores entre as carruagens. (...) 
Ele teria descrito a viagem como insuportável, mas os limites a que a resistência humana consegue estender-se na Índia fazem com que esta palavra perca todo o significado."

Khushwant Singh foi sempre indecoroso e dilacerante para os costumes da sociedade indiana, chocando-a, mas isso não o impediu de escrever ao longo de toda a sua vida. 

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Uma edição Cavalo de Ferro 




quarta-feira, 10 de outubro de 2018

«Pequenos fogos em todo o lado» de Celeste Ng - Opinião


Uma edição Relógio d’Água, 2017

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Em Shaker Heights, Cleveland, o pacato subúrbio tem tudo para que a vida dos seus moradores corra às mil maravilhas. É verdade, é cliché, mas as vidas bem-sucedidas são por ali uma colecção digna de caderneta de cromos, artigo usual nos anos 90, precisamente a década em que decorre a acção.

Postas as peças em cima da mesa, o jogo começa do fim para o princípio, recuando a acção e o enredo para que o leitor consiga perceber como chegámos aquele fogo posto.
No entanto, há regras do jogo e a família Richardson cumpre-as à risca, tendo apenas um pequeno entrave, os filhos, ou pelo menos alguns deles. E é aí que os pequenos fogos alastram.

Outra peça menos fácil de encaixar no jogo é Mia, uma mãe solteira recém-chegada à "vila", com uma filha adolescente, Pearl; ambas vão criar laços fortes com os Richardsons, mas também desfazer o seu mundo idílico e cheio de máscaras, abrindo espaço a mais pequenos fogos. Mia é um enigma, um case-study, uma mulher misteriosa que desperta paixões.

"Concentrou-se na fotografia (...) Era uma fotografia de uma mulher, de costas para a câmara (...), um emaranhado de membros que, apercebeu-se a Sra Richardson com um choque, a fazia parecer uma enorme aranha. (...) acabou por se voltar para Mia com curiosidade. Nunca conhecera ninguém como ela. (...)
A Sra Richardson sempre levara uma existência ordeira e organizada. (...)Tinha sido educada para seguir regras, para acreditar que o funcionamento correcto do mundo dependia da sua obediência (...) E depois havia aquela Mia, uma mulher completamente diferente, (...) uma parte dela queria estudar Mia como se fosse uma antropóloga..."

Quem mais se sente perturbada por esta propagação incendiária é Elena Richardson, num misto de curiosidade e de medo avança pelo caos que teme poder instalar-se e procura saber mais do passado das recém-chegadas. Talvez Elena seja a personagem mais fascinante, porém a reviravolta na sua vida é expectável.

"Durante toda a vida, aprendera que a paixão, tal como o fogo, era uma coisa perigosa. Facilmente se descontrolava. Subia paredes e ultrapassava trincheiras. As mais pequenas centelhas saltavam e espalhavam-se (...) Era melhor controlar a sua centelha (...) Ou, se calhar, mantê-la cuidadosamente acesa (...) Cuidadosamente controlada. Domesticada. Feliz em cativeiro. A chave, pensou ela, era evitar a conflagração."

Pode o passado ser uma arma directamente apontada a nós e por isso ameaçador e condicionante?
Pode a queda das máscaras, tão acarinhadas, condicionar o futuro, abrindo caminhos sem retorno no quotidiano de uma família?
Pode, claro que pode. E é isso que Celeste Ng mostra neste seu «Pequenos fogos em todo o lado» dando várias dimensões às suas personagens e histórias de vida, num enredo cheio de camadas.

A velocidade inicial com que cheguei a bem mais de metade do livro quase o torna num típico page turner, estava cativada pela escrita e pelas camadas que a autora dá às dinâmicas criadas entre os adolescentes e as próprias mães, instigando curiosidade no leitor, tornando a leitura imparável; mais pelo ambiente de mistério do que pelas crises de adolescência.

 A aura daquele pedaço americano, já tão falado, era agora descrito de um jeito menos banal, ainda que pejado de referências dos anos 90, facto que tornou o livro tão próximo da minha adolescência. No entanto, a certa parte, ou por desconfiar do desfecho ou por lhe reconhecer semelhanças com algumas séries, desinteressei-me um pouco pela leitura. Ou então, por a certa parte já não querer mais viagens ao passado de Mia, queria sim o calor de cada momento tenso na ligação daquelas mulheres.

"(...), Mia deixou ficar a mão, como se fosse uma escultora a modelar os ombros de Pearl. (...) Há muito tempo que a filha não a deixava estão tão próxima. Os pais, pensou, aprendiam a sobreviver a tocarem cada vez menos nos filhos. Em bebé, Pearl, agarrava-se a ela; (...) à medida que foi crescendo, Pearl continuou a agarrar-se à perna da mãe, depois à cintura, depois à mão, (...) Agora que Pearl era uma adolescente, as carícias da filha tinham-se tornado raras - (...) - quando aquilo que mais queria no mundo era abraçar a filha com tanta força que as duas se fundissem e nunca mais pudessem ser separadas."

É curioso que agora ao escrever sobre este livro, relendo partes, tenha dado conta que realmente gostei mais dele agora do que no momento em que o terminei. É esta a magia dos livros. Só pode!

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

«A rapariga que lia no comboio» :: opinião



Esta leitura teve o apoio da Porto Editora
e foi-me recomendada pela metade colorida.

***

Juliette, uma snifadora de livros, como todos os bibliómanos que conheço, cresceu a ajudar o avô, outro adorador de livros e cedo aprendeu a refugiar-se neles. E tentava, sempre que possível, passar essa sua adoração aos que lhe eram mais próximos; se bem que eram escassos. Juliette era quase só, quase invisível, presa num trabalho que já não tinha nada para lhe oferecer (se é que alguma vez chegou a ter) e lhe dava uma crispação nos dedos dos pés. É isso, Juliette é igualmente peculiar!

"Não nos ensinaram
o único exercício que poderia salvar-nos:
aprender a sustermo-nos de uma sombra."

Nem que essa sombra seja da espessura da lombada de um livro ou da espessura de um verso. 
 É nos livros que reside a esperança, o sonho, a viagem e a vida. E as frases que lhe inspiram os dias.

"Falava dos livros como seres vivos - velhos amigos, temíveis adversários por vezes, alguns a fazer figura de adolescentes provocadores e outros, de velhas senhoras a bordarem tapeçarias junto à lareira. (...) alguns livros eram cavalos fogosos, indomados, que nos levam num galope desenfreado, agarrados, de qualquer maneira, às suas crinas. Outros barcos que vogavam pacificamente nos lagos, em noites de lua cheia. Outros ainda, prisões."

A cavalo de livros e de ideias, Juliette tenta empreender a árdua tarefa de ser uma passadora de livros. À cabeça do cartel, Firouzeh e os seus enigmas, tentam revelar o que mais se pode esconder na espessura dos livros e nas pessoas que os lêem. Ainda que a resolução dos enigmas passe por deixar, a Juliette e aos leitores, mais questões do que respostas... tal como muitos livros.

"(...) no fundo, somos todos obtusos, impermeáveis às emoções de outrem, incapazes de decifrar os gestos, os olhares, os silêncios, e estamos condenados a explicarmo-nos, laboriosamente, com as palavras que nunca serão as certas."

Em busca de palavras, mas também de atitudes, pessoas e lugares, veremos Juliette partir numa estante andante, um mini-autocarro amarelo e assim deixar a porta aberta a um segundo volume. 

Este livro de Christine Féret-Fleury é um belo exemplar de biblioterapia, dá sugestões sem apontar caminhos, levanta questões com aparente delicadeza, mas atira-nos frases que nos deixam a pensar, e apresenta um enredo ternurento, que toca no quotidiano, mas dá-lhe uma capa um tanto inocente e improvável, mas afinal, os livros também são feitos para sonharmos. 



quinta-feira, 4 de outubro de 2018

«MANAZURU» de Hiromi Kawakami - Opinião


"O meu marido desapareceu sem deixar rasto. Até hoje, não voltei a vê-lo."

O romance «Manazuru» podia assim encher-se com luto e o abandono, causado pela incerteza do desaparecimento de Rei. Mas não. Apesar de narrar um desaparecimento com mais de uma década, Kawakami, coloca Kei, a esposa, no centro desta narrativa, preenchendo-a de emoções e sensações, descritas em pequenos gestos do quotidiano. No entanto, o livro é igualmente um labirinto de duvidas, que substitui o ritmo ansioso e ofegante da incerteza por uma delicadeza estranha e cativante, que parece própria da cultura nipónica.

"A resposta não se fez esperar. Sim, estou ressentida! Sim, sinto rancor. (...) é qualquer coisa no mais fundo de mim própria, é todo o meu ser, o núcleo do meu corpo que tem ressentimento por esse marido que desapareceu sem dizer fosse o que fosse. 
(...) Qualquer coisa de que Seiji não se pode apoderar. Teria de ser Rei a fazê-lo. (...) Só o homem que ele era se podia apoderar. 
É o que explica, sem dúvida, que a minha mãe não gostasse dele.
(...) 
Ter-nos-emos reaproximado desde que voltámos a viver juntas? Três mulheres debaixo do mesmo tecto, três seres de carne. Aqui estão os seus corpos, como pequenas esferas que se se misturam. As três mulheres não têm o mesmo eixo, não têm o mesmo centro, não são superfícies lisas, estão aqui, cada uma delas, com a sua espessura própria."

«Manazuru» é um livro complexo que explora a geometria própria de cada corpo e do que lhe faz falta nas diferentes relações de proximidade. A relação mulher-homem, que ultrapassa a dimensão do casamento, primeiro com o aparecimento de uma criança, carne da sua carne, e depois, mais tarde, fruto da necessidade e do desejo, um corpo que pertence a outro alguém, um amante. E no meio disto tudo, o retomar a uma proximidade mais ancestral, o voltar ao corpo da mãe. 

"Quando nos vemos separados de um ser que nos acompanhou por muito tempo, só o efémero resta. Passar-se-ia, sem dúvida, a mesma coisa com Seiji. 
Fi-lo entrar no meu quarto. - Porque o meu corpo não te deseja! - expliquei-lhe e ele riu. - Mas eu, eu tenho uma certa vontade de estar contigo. (...)
Amo-o, tudo é frágil, e eis-nos separados. O amor não implica necessariamente a união."

Kei analisa o que gera proximidade, se amor, desejo, necessidade, afecto, toque, solidão, dependência, lugar, eixo, distância, medo, obrigação... E analisa-o face a quem lhe é próximo, a mãe, como lugar e casa para onde volta; a filha, Momo, que lhe sugou energia e afecto e a fez renegar às suas vontades de mulher esposa; ao marido que a possuía de forma desigual; ao amante, que na sua estranheza silenciosa, a aceitou e lhe devolveu um certo sentimento de pertença e ainda uma presença misteriosa que a acompanha para todo o lado. Essa coisa que se sobrepõe e se impôs a Kei, tal como as memórias e o vazio.

"Tudo se tornou vazio.
Murmuro de mim para mim, a sós comigo.
E todavia, havia qualquer coisa que se preparava já para preencher o vazio. Do mesmo modo que a água em que se dissolve o ágar-ágar não é realmente translúcida, porque, apesar de lavadas as algas das suas impurezas, as duas substâncias têm densidades diferentes e é necessário algum tempo para que uma e outra se misturem (...)"


*

Tradução: Miguel Serras Pereira