quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

«Pão de Açucar» de Afonso Reis Cabral - Opinião




"(...) soube que me oferecia tudo o que eu procurava: a colisão de mundos em perigo, o conflito dos intervenientes com ele no centro, a problematização do corpo, as consequências da miséria, essa palavra que já não se usa mas ainda se aplica, o equilíbrio entre o desespero e a esperança. Quer dizer, nada de especial. 
A partir daí, pesquisei os acontecimentos a fundo.
Li o processo judicial sem parar, (...)"

É em conversa com um interveniente das zonas sujas, Rafael Tiago, que Afonso Reis Cabral parte para esmiuçar a ideia central deste «Pão de Açúcar». A morte violenta de Gisberta, facto verídico (Porto, 2006), confere a este romance o lado mais negro de uma sociedade que alimenta e faz crescer crianças que se tornam adolescentes desajustados e desapegados de valores ficam muito aquém dos desejados. 

"(...) A bicicleta ainda não se tornara real, faltava dá-la a conhecer. Assim é com desgraças e felicidades, partilhamo-nas para mediar a emoção. Mas então pensei, qual alegria qual tristeza, era só sucata despejada com outras porcarias. Calei-me porque achei ridículo, angustiante também, que o lixo de um fosse o entusiasmo de outro."

É no meio do lixo e da doença que uma amizade frágil e intermitente se dá, satisfazendo necessidades de atenção de ambas as partes e reciclando os restos de uma bicicleta, entretanto, entre visitas, a violência e os ânimos exaltam-se e resultam na morte de um transsexual seropositivo e sem abrigo.

"Ela meteu a ponta do indicador no arroz, experimentou um bocado, e depois já punha a mão inteira, já dizia «Está quente!», engolindo com gozo e fazendo os gemidos de quando o ser humano é bicho. (...) Ávida de limpar o lado dela, não reparava na minha cautela. 
Apesar de contente por vê-la satisfeita, a imagem da doença babada para a panela fez-me nojo. (...)
Contudo, o nojo persistia como as tareias que se apanham na infância e nos deixam o corpo dorido até ao fim da vida."

O cenário não podia ser mais degradante e é em si uma personagem que sublinha a critica social, alertando para um problema que persiste em tantas cidades de norte a sul do país; prédios abandonados aos quais os interesses económicos ou os imbróglios jurídicos não deram seguimento e que são focos promotores de miséria. 

"(...) O esqueleto não dava hipermercado. (...)
As ratazanas foram as primeiras. Ainda as obras decorriam e já elas se aninhavam nos cantos. (...)
À noite, os ocupantes dormiam em barracas improvisadas com caixotes, toros, cartões, plásticos e colchões. Melhor dito, dormiam em lares com toques de luz a conquistar o cimento. A ruína sobrevivia à frustração e sublinhava-se: era só gente a dormir.
(...) Para ser útil, não bastava abrigar pedintes, segredos, porrada, troca de seringas, orgasmos e gestos brandos. Não, para ser útil, havia que inaugurar um parque de estacionamento."

O livro é rico nas cenas de convívio entre os jovens e no Pão de Açúcar com Gisberta, mas também dá saltos temporais que levam o leitor a conhecer as duras realidades que ali chocam. Os capítulos oscilam entre o presente de Rafael como mecânico, o lar/abrigo onde os jovens foram criados e a pensão onde Gisberta se prostituía, bem como momentos específicos de algumas daquelas vidas. 

"A determinado momento, a Gi passou-lhe a mão pelo cabelo e ele aceitou a carícia com uma naturalidade que eu nunca igualaria. A naturalidade de quem lida desde pequeno com travestis. Para mim foi como levar uma flechada na cabeça: ser assim afagado era mais do que muita gente podia esperar da vida."

Entre alimentar Gisberta e auxiliar Rafael no arranjo da bicicleta, outros episódios acontecem entre os restantes jovens, ainda assim, e mesmo o leitor sabendo o fim, não parece existir nada de decisivo para que a violência ocorra e persista dia após dia. Talvez as circunstâncias, o acaso, a revolta, a desesperança e a solidão... Talvez. Mas isso e muita falta de carinho.

"Dali veríamos as coisas de outra maneira, os problemas ficariam na cave. Os dela, a morte que a comia por dentro, que a obrigava a abdicar a cada dia; os meus, saber que a necessidades de a ajudar só fazia sentido por ambos não termos mais ninguém."



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