Páginas

sábado, 28 de setembro de 2013

«La Coca» José Rentes de Carvalho - Opinião

"Entusiasmado, não me dei então conta de que em parte me iludia. (...) Julgando ir ao encontro das excitações do presente foi o passado que se impôs, as lembranças de ontem pesando mais que as vivências do momento, a moldura substituindo-se ao quadro.»

E ainda bem que foi o passado que se impôs!
Este livro de Rentes de Carvalho remonta a um retorno do autor às suas origens, ao norte de Portugal, na esperança, a meu ver, vã, mas nunca oca, de relatar o contrabando no nosso país, com as implicações sócio políticas que isso arrasta. No entanto, o brilhantismo que usa ao caracterizar os seus personagens, conferem-lhe um certo romantismo que, a certa altura, nos faz esquecer a verdadeira acção.
Aliás, qual é a verdadeira acção e rumo desta narrativa?

Esta questão assombrou-me por toda a leitura, já que os momentos de um quase diário, um revisitar de memórias, novamente romanceadas com os locais ou os seus intervenientes, foram para mim momentos altos da narrativa e esta dava passos de gigante e ganhava dimensões memoráveis.

"O presente que me fascinava e eu quisera vis testemunhar, existia como que descolado no tempo, sem as nostalgias de ontem que eu lhe emprestara, nem a simplicidade dos meus sonhos de amanhã."

É o registo sincero e nostálgico que confere força às memórias que nos fazem sentir uma enorme proximidade entre a década de 90 e a actualidade, na forma aparentemente inócua, mas pragmática com que expõe algumas críticas sociais e políticas.

Apesar de curto, é um livro que acompanha o ritmo acelerado de quem retorna, mesmo que por tempo limitado, à terra mãe e a quer brindar com visitas aqui e ali, mas devido à temática da droga expõe ainda outro ritmo, mais cambaleante, mas inesperado, que com o entrelaçar das memórias do autor, nos transportam a épocas diferentes, obrigando-nos a abrandar o passo e quem sabe passear com o autor pelas ruas da memórias e as conversas entre amigos.

Entre amigos, se assim se pode dizer, memorizei dois episódios divinais, o das observações do Diego Romano e o seu Hotel Roma (negócio pra inglês ver) criticando a estrangeirada e apelidando-os de pelintras e alcunhando-os de porcos. Ou outras amizades como o Manolo da Espanhola ou o Feio, com quem se mantinha o adágio de "amigos, amigos, negócios à parte", tal como a farsa popular e o fechar dos olhos ao sustento dado pelo contrabando.

«La Coca» é ainda um roteiro por terras do norte de Portugal e pela Galiza, descrevendo não só as sensações, as cores, os cheiros, mas também as atitudes das gentes de tais povoações. Ensinando ainda a olhar com os olhos da nostalgia para que as visões do presente não se exaltem com as mudanças do progresso... por vezes nefasto.


"Terra de gente mexida, em constante alerta, passa-se na rua e todos os olhos nos escrutinam. Sem malícia, mas com uma ponta de desconfiança, atitude típica gerada por séculos de contrabando... (...)por entre hortas descobrem-se uns horrores modernos... Com o tempo aprendi a fechar os olhos para o que mudou."

Na obra, o autor refere-se a Dom Ramón e é nessas que eu revejo a escrita de Rentes de Carvalho:

"No meu íntimo o poder de raciocínio parecia anestesiado, enquanto a minha fantasia e a minha sensibilidade se amoldavam dóceis às palavras daqueles homem, que à postura de verdadeiro líder aliava um dom excepcional de contar."

*

Uma edição da Quetzal, mais aqui: http://quetzal.blogs.sapo.pt/tag/j.+rentes+de+carvalho
O autor em entrevista, mais aqui: http://www.ionline.pt/artigos/jose-rentes-carvalho-miudo-minto-diabo-ninguem-deve-acreditar-mim

Sem comentários:

Enviar um comentário