"E não havia maneira de me habituar a viver morto."
Será este o sentimento de quem emigra?
Existirá outra forma de imigrar, sem ser geograficamente?
"O título é uma referência ao processo de transformação pelo qual se passa quando saímos de uma realidade e temos de nos recriar noutra. Esse para mim é o morrer, porque a partir do momento em que desembarcas noutro sítio qualquer esquece quem eras, começa tudo do zero." Diz-nos o autor em entrevista ao Ipsilon.
Partindo então destas duas imigrações, o autor conta-nos a história de Brito imigrante ilegal e da sua família mais chegada, a mulher e o filho.
Eu não sei se quem já leu, identificou logo à partida que o imigrante Brito teria necessariamente de ser português imigrado algures nessa Europa. Apesar do nome ainda estive algum tempo a cruzar as referências com a maioria dos imigrantes de Leste que temos cá em Portugal. No entanto, logo me apercebi que a "ilha" seria então o Reino Unido e que Brito seria mesmo português. O que desde logo é brilhante o autor ser capaz de nos aproximar de outros imigrantes.
As características e os tiques de quem imigra, são para mim identificadas apenas com os que partem e voltam nas férias e com quem me cruzo no Verão. Face à imigração, conheço mais pelo que leio ou vejo nas notícias e claro, quando viajo e contacto com portugueses ou outros imigrantes e as semelhanças entre cá e lá (seja que país for) é bastante similar. Mas isto para dizer que os clichês marcadamente de imigrante estão bastante bem definidos e retratados nas personagens de Ricardo Adolfo, para além de tiques igualmente bem portugueses e que encontramos em qualquer lado. Dando isso um aspecto muito real a todo o enredo.
Enquanto o livro decorria eu só pensava no meu pai, que é quase um imigrante intermitente, a sua dificuldade com a maioria dos idiomas, nomeadamente o inglês e o atrofio que é quando precisa de ajuda, essencialmente com direcções, caminhos, moradas... e seja, na França, na Bélgica ou na Alemanha, é raro encontrar quem se importe em "perder" tempo em o ajudar. Daí que ele afirme que o GPS deva ser A invenção!
Em resultado, surge a desconfiança e a descrença, em geral, em toda a gente e por todos os motivos. É muito disso que se assiste neste "Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas".
Sendo o próprio autor um imigrante é curioso que tenha escolhido retratar esta parcela de imigrantes, mais flagelados e com menos habilitações académicas, mas, ele mesmo o justifica: "Há uma parte que é o cliché de puxarmos Portugal para nós, e depois há outra que é o facto de ganharmos uma perspectiva diferente sobre a nossa realidade. (...) Percebi que a vida aqui é bastante rica para quem quer escrever. Há contradições e tensões muito pequeninas que são fantásticas."
Pequenas riquezas essas que preenchem o seu "Mizé", mas que se encontram também aqui com facilidade.
Riquezas de um povo, da terra e da sua ruralidade.
"Prometi-me levar o miúdo à terra um dia e ensinar-lhe a matar o porco, varejar azeitonas, encontrar o caminho para casa embriagado, (...) fugir à guarda, reconhecer o caminho das pedras no rio, (...) baldar-se à missa sem dar nas vistas, aliviar a caixa das esmolas..."
"Se não há testemunhas do nosso dia-a-dia, não há vida." É esse espaço morto que o autor nos quer revelar e fazer pensar. A dificuldade de tomar uma decisão e seguir em diante. Acho que é esse o cerne do livro, o peso das decisões, das nossas e das que os outros tomam e afectam a nossas, aliás isso será o viver em sociedade. Há toda uma história colectiva de uma Europa sem fronteiras que reserva, algures, um melhor espaço para todos. Se a Europa é para unir os povos, porque continuamos a ter estrangeiros e imigrantes!? A ideia do imigrante como vizinho a roubar no quintal alheio (pág. 113) é digna de debate, essencialmente se pensarmos em fronteiras e identidade - haverá assim tanta que ainda nos separe?
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