A minha paixão por Sam Savage começou sem sequer ter lido nada do autor. Talvez o mais correcto seja dizer que me apaixonei pelo que Carlos Vaz Marques lia quando recomendava «As Recordações de Edna», que agora finalmente também veio parar-me às mãos, graças à nossa nova parceria, desta vez com a Planeta.
«O Grito da Preguiça» foi amor à primeira vista, já que a capa e a contra capa são bastante sugestivas e já deixam adivinhar o seu conteúdo, tornando-se desde cedo num prenúncio da sua qualidade.
Escrito através de cartas este é um grito muito para além da preguiça, diria até, que é um hino à rebeldia, num rasgo de criatividade enorme, apelando à doçura e ao lado jocoso do personagem e da própria escrita de Sam Savage.
Na parte da preguiça, se o pudermos comparar (ao Whittaker, claro), seria na lentidão dos seus passos, como se com isso medisse e escolhesse as palavras adequadas para que nenhuma carta fique corrompida pela devassidão dos dias apressados ou das vivências sociais.
É com extrema maleabilidade que, entre cartas, vamos conhecendo o que se passa na vida de Andrew Whittaker, ou será melhor dizer, que conhecemos o que se passa na sua cabeça!?
A forma como o personagem encara o mundo é o verdadeiro cerne de todo o livro, afinal o que é verdade para além da pobreza, das rendas em atraso, das dívidas, do divórcio, senão a sua própria interpretação da realidade!?
E que interpretação tão engenhosa, mas igualmente singela e quase infantil de explorar certas ideias. Melhor ainda é a forma, como dentro dessa quase inocência, vai dizendo e sugerindo uma crítica às revistas literárias, à literatura e aos escritores... mesmo que se vá denunciando, o que torna a leitura ainda mais hilariante.
É aliás, toda a componente de que nada pode ou deve ser levado tão a sério que torna o livro delirante. É uma solidão atroz que gera todas as situações ao redor de tantas e tantas cartas, abrindo assim o leque do impacto que pode ser a solidão de um escritor.
No entanto, os juízos de valor são feitos com brilhantes jogos de palavras e ideias, com conclusões inesperadas e (algumas) um tanto absurdas, mas vendo um lado muito mais pragmático da vida.
A participação do leitor é ávida, já que somos levados a imaginar as situações e a criar as nossas próprias ilações. É como se Sam Savage desse voz a quem o lê e o incluí-se na linha de vida do personagem, como que para dar ordem ao caos que se instalou, adivinhando as respostas dos destinatários, ou seja, deixa-nos como seus destinatários.
Se por vezes somos Jolie, noutras queremos ser Fern, raramente queremos ser os inquilinos, e se imaginamos escrever um livro, vemos o hilariante de muitos e muitos editores ao receberem milhares de manuscritos...
É inevitável pensarmos no que lhe iríamos remeter, nós queremos ser o destinatário de, pelo menos uma, das cartas de Andrew Whittaker e isso é tão ou mais hilariante do que todas as situações criadas pelo autor.
Se quem lê nunca está sozinho, quem escreve também não!
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