(...) Disse Ali: Não é a falta de pessoas à nossa volta que faz a solidão. São as pessoas erradas."
O caminho é verdadeiramente longo. Os dias irão esticar-se. O tempo parecerá parado. Os relógios avariados. «Para onde vão os guarda-chuvas» de Afonso Cruz é uma trovoada de questões e um dilúvio de emoções. Um relato carregado de luz, mas marcadamente povoado de nuvens negras.
"54. Encheremos o mundo de coisas preciosas. Serão tantas que os homens passarão por elas julgando-as banais."
Assim estou eu perante este livro. É precioso todo o encadeamento, todo o complexo de histórias que se cruzam, como as tais linhas dos tapetes de Fazal Elahi, mas o sofrimento é tanto, que eu ainda estou a recuperar de todos os socos violentos que esta narrativa nos dá! E o fim!? O fim foi sufocante.
Não posso dizer inesquecível, pois eu quero esquecer a possibilidade de tal acontecer, mas é inevitável dizer que o fim quebra todas as regras do quanto o ser humano suporta sofrimento.
Fazal Elahi era um homem com o desejo de passar invisível, acreditaria que de tão invisível conseguiria enganar a morte. E enganou, pelo menos a física, já a emocional...
Fazal Elahi era bom muçulmano, mas uma alma irrequieta e turbulenta, atulhada de questões, muitas a Alá.
A própria forma como aceitava as irreverência de Bibi demonstrava que o seu entendimento suplantava os ensinamentos mais restritos ou fundamentalistas. Aliás, a vida de Fazal Elahi foi toda feita de irreverências e rodeada de pessoas ainda mais irreverentes.
Badini, o mudo mais falador de sempre (só pode) fazia das mãos palavras e das suas palavras poemas, artes, explicações divinas para o entendimento supremo da vida. Mas se segundo ele somos estrelas, aquelas que Alá vê quando olha lá de cima, porque razão o futuro se pinta tão negro? O mudo tinha muito medo da felicidade. A felicidade era como uma mão que tira e uma outra que dá, mas só que em locais diferentes.
Nas mentes irrequietas e intelectualmente desconcertantes de Badini e Elahi recaem as melhores partes do livro. Os seus diálogos, revelando preocupações que ultrapassam religiões, costumes ou política, são antes o espelho das preocupações humanas, revelando as semelhanças que nos unem. Talvez nunca se diga em palavras explícitas, mas o que ambos desejariam era ponderação, tolerância, equilíbrio... mas a vida, o mundo, para além de ser um composto frágil, tem também um equilíbrio absurdamente/moralmente/curiosamente/esteticamente desequilibrado.
Curiosamente são as ideias, que mesmo dispersas rapidamente se unem, permitindo, quase absurdamente, ver um equilíbrio entre ensinamentos cristãos, hindus e muçulmanos, como se com um pouco de cada lado, se obtive-se um conjunto quase perfeito.
"- Disse Rumi: uma opinião é um pássaro com apenas uma asa."
"- Posso continuar cristão? (Isa, pág.379)
Fazal Elahi coçou a barba e condescendeu:
- Podes, desde que sejas um bom muçulmano."
Mas a religião não fica por aqui e não se esgota. A antiga Pérsia é também trazida para dentro do livro com toda a beleza dos Fragmentos Persas, um livro dentro de um livro. Como o Afonso Cruz já nos habituou. Há também ascetismos, esoterismo e misticismo... há filosofia, numa preocupação de entender a Humanidade, de compreender o próximo como uma continuação de nós mesmos.
Fazal Elahi será um exemplo? Será a sua fé e a sua capacidade de ser reinventar e perdoar um ensinamento? Mas o que lhe falta para ser constantemente magoado, espezinhado e atraiçoado?
Fazal Elahi perde um filho.
Bibi é atraiçoada nas suas convicções.
Aminah é fútil ou quererá apenas testar um sonho, uma promessa de emancipação!?
Badini que na sua divindade prova a sua teoria da felicidade.
Nachiketa Mudaliar converte-se por amor, mas não esquece as raízes e é com elas que justifica a vida
Salim, Nauman ou Isa... a inocência reflectida no íngreme que são as escadas da vida.
O rol de personagens é extenso, mas consistente. Afinal a vida é pautada de inúmeros encontros e desencontros que, mais ou menos, contribuem para a nossa educação, para a nossa liberdade...
"(...) a educação é uma limitação da nossa liberdade, ensinamos os outros a respeitar fronteiras..."
É difícil explicar, mas este livro é um compêndio de ideias, de ensinamentos, de questões... quem sabe uma bíblia para ateus, daqueles que crêem em algo, mas não sabem bem o quê. E "se é difícil de explicar, é porque não é verdade, a verdade é algo muito simples."
Mas como se ensina esta verdade simples, se somos todos tão complicados!? Não ensinamos, não explicamos... perguntamos, questionamos, vivemos na dúvida.
"O futuro é uma pergunta. Se há terrorismo eficaz, que valha a pena, é perguntar."
E vocês, sabem para onde vão os guarda-chuvas?
"Alguns poemas, traduzia Elahi às crianças, ficam colados nas árvores e no céu, e só se apanham quando estamos suficientemente maduros para o fazer."
*
Uma leitura com o apoio da Alfaguara/Objectiva. Vejam mais do livro, nos diversos links disponibilizados:
Facebook de Para onde vão os guarda-chuvas
Blogue da Editora Objectiva
Confesso que tenho estado indeciso sobre se adquiro ou não este livro.
ResponderEliminarJá li 3 livros de Afonso Cruz, tal como tenho lido muitos outros de literatura atual de Portugal. Habituei-me a ver demasiados livros onde a forma revolucionária da escrita e a originalidade das imagens matam o conteúdo. Fico fascinado pelo estilo e desiludido pelo vazio mensagem (embora pareçam existir disfarçadas por frases de belo efeito).
Será este mas um caso?... este artigo desenrolou textos belos..., mas continuo na dúvida no campo das ideias
Boa tarde Carlos, creio que o conteúdo deste e de muitos livros poderá estar relacionado (em muito) com aquilo que poderemos querer absorver do livro.
ResponderEliminarA forma, a estética é conhecida e encontra-se nos outros livros de Afonso Cruz, mas me nenhum acho que a beleza da estrutura roube algo ao conteúdo.
Mas se for ler, depois partilhe.
Entretanto passarei no seu blogue.
Grata pela atenção é bom ter feedback ;)
Boas leituras,
EfeitoCris
O final do livro foi um murro no estômago :/
ResponderEliminarUma dúvida: afinal quem matou Bibi?