Um calendiário (pág. 113) em jeito de diário de uma tragédia ajeitada, secretamente anunciada, anotada com xizes vermelhos, num calendário de horas e dias, em bizarras sucessões!
Da sonata de Inverno até ao concerto de Verão, Sandro William Junqueira traça uma possível distopia, que não é nada mais nada menos do que um olhar duro à realidade e um "apanhado" à História recente. O que nos leva a muitas questões sobre poder, medo, povo, felicidade, política, amor, mas ao ler a opinião da Renata (Roda dos Livros), a pergunta que ela coloca é a mais pertinente: "será que é a violência dos regimes opressivos e autoritários que brutaliza as pessoas ou será que é a brutalidade dos seres humanos que gera as ditaduras?"
E os dados estão lançados para o cerne deste enredo de traços exacerbados e em tom alucinado, mas que olham o mundo de frente e de olhos bem abertos:
"A implosão das igrejas é outro passo certo dado em direcção a um estado social que não desperdiça. O reino da Igreja não é deste mundo. E, se ao mundo não pertence, nele não se deve edificar. Plantar raízes. A fé não nasce de um edifício nem se desenvolve nos volumes da arquitectura. (...) A casa de Deus só pode ser a cabeça, o coração, as mãos, os pulmões, os rins, os pénis, ânus e vaginas de quem acredita. Fora da carne, Deus perde compostura, ideias e emoção." (p. 30)
Tendo o enredo num tempo indeterminado e num lugar incomum, comandado por um governo totalitário, com mão de ferro e leis opressoras, o Ministro Calvo e o Director vêem a sua ordem abalada após um ataque a um militar. A ordem está em causa porque O Mensageiro havia previsto o acontecimento, referindo uma estranho conversa com Ele... fazendo assim tremer os alicerces religiosos já impostos.
Estranhamos o facto de nenhum personagem ter nome próprio, mas sim o nome da sua profissão ou de alguma característica física: a Ruiva, o Director, o Ministro, a Prostituta Anã... Tal escolha do autor, dá-nos a possibilidade de: ou lhe atribuímos um nome - ou pensamos em como aquela sociedade seria fria e estratificada, retirando a individualidade de um nome e a liberdade que isso lhes daria.
O sexo, as relações, o poder, o amor, o esforço, a dedicação, a guerra, a política... tudo por frases curtas e um enredo cru, duro... que a certo ponto pretende ser violento e até, talvez, chocante.
Depois, mistura-se e deixa-se perder em divagações que mais parecem infantis e oníricas, que sem entender muito bem ou até gostar, ligo à necessidade que o autor tem em separar as personagens em dois estratos daquela sociedade.
É impessoal e frio, mas igualmente belo, cuidado, parecendo ter palavras escolhidas e pesadas milimetricamente para aquele contexto, depois noutros, deixa-nos à procura do seu sentido, do seu rumo.
É como se as palavras, as próprias palavras quisessem, só por si, dar-nos a sensação de violência, de perdição, de frustração e até de delírio que o próprio cenário e enquadramento têm... mas depois há a fome, a fome do amor, da entrega, da comunicação, do desejo... tudo confinado, amarrado, entalado, sufocado... nas regras, no rigor...
"Só quando o inferno nos toca com a asa inesperada é que abrimos os olhos." (pág.160)
Tudo nesta obra pode e deve ter reticências, até chegar ao fim e saber afirmar se gostámos ou não, ponto parágrafo, parece-me impossível. Preciso de reticências!
Talvez a sua leitura deva reticenciar-se, repetir-se, alongar-se... uma leitura para reler e reinterpretar!
*
(excerto completo)
“O motor: breve súmula dos mais importantes ditados do Ministro Calvo
O medo é motor indispensável à civilização.
Agente potente que, bem oleado, bem afinado, bem conduzido, permitirá o progresso económico. Não controlado, este movimentador de massas tornar-se-á adversário. Inimigo em vez de amigo. Uma bomba temível que fará a política resvalar para terrenos lodosos e encravar engrenagens. O Governo deve ter isto em atenção. E analisar com argúcia todos os seus componentes e peças: do pequeno receio ao grande terror; da cautela particular ao pânico geral. É necessário examiná-los, testá-los, pô-los em movimento, a todos. Lubrificar o medo. Realizar experiências. Trabalho de oficina. Para do medo retirarmos o máximo lucro. E o rápido avanço. Está mais que provado: o amor é inútil, só atrasa, não dá lucro. E é talvez o maior adversário da boa política.
Assim e, antes de qualquer tomada de decisão, este Governo deverá ter sempre presente, como auxiliar formal e pedagógico às suas ideias e leis, os números, as tabelas, enfim: os consumos do medo.
O que mais teme o povo?
Deverá ser a primeira questão.” (p. 204)
As influências musicais: Rachmaninoff e Erik Satie
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