Nesse imenso mar humano, haverá forma de salvarmos alguém ou de sermos salvos? Talvez a forma de salvação seja o amor!!!?
"Mar Humano" será para mim: o romance do comprimido mágico. Dito assim parece ridículo, parece redutor ou nonsense, mas não é, e melhor não vos revela nada do enredo. É pensar num gesto de esperança, a revelação de que tudo, um dia, tenha cura.
Mas terá o amor cura!? Dito assim, é estranho, mas é assim que pretendo que fique.
Se alguém ao ler, sei lá, cinquenta anos de história ou ao ler duzentas páginas e dobrar vários cantos e escolher descrições de um amor que a mim muitas vezes roçou o platónico e até egoísta, chega-se ao fim e o romance mais parece um policial que dá uma volta enorme e nada é o que parecia ser... menos Portugal, mas isso é pano de fundo.
Continua estranho o meu relato? Não faz mal, é assim que o quero para vos aguçar o apetite.
Raquel Ochoa, já anteriormente distinguida com o prémio Agustina Bessa Luís, mostra aqui, novamente, inúmeros talentos. Uma escrita que demonstra confiança, perseverança, resiliência, inteligência, mas mantendo sempre um toque de aventura, de incerteza, de procura... de insaciável. Mostra com as descrições, com o enredo, com as personagens, em especial Ema, decidida, mas turbulenta; confiante e aventureira, mas insaciável, mostra ao leitor uma imensa capacidade criativa, em que imensas frases brilham por si só, mesmo fora do enredo ou contexto.
Curioso foi que em certos aspectos me pareceu estar a ler, novamente, o Vento dos Outros e a encontrar uma mulher que tem algo da autora que viaja mundo fora e que revela ânsia de conhecer, descobrir e revelar. Ao mesmo tempo, encontramos coisas de qualquer uma de nós, mulheres... é um misto de sensações. É interessante e sai fora do enredo, mas ao mesmo tempo devolve-nos à história, ao romance, com outros olhos.
Confesso que por vezes me irritou, me cansou, como se a autora claudicasse um bocado em volta da estagnação e atraso do próprio país, quase como quem quer meter o dedo na ferida. O que por um lado é muito interessante, dando ao livro um constante contorno de critica social, que tendo em conta o fim, critica até à actualidade. É cáustico trazer o atraso de um país para o atraso e os intervalos dados ao amor. É como se o amor de Ema e Samuel não fosse para o tempo do Estado Novo. Como se o mundo avançasse com eles sempre a pular em direcções opostas e destinos manipulados.
"A vida, nos dias malditos, contraria-nos sempre."
É perspicaz trazer para o cenário pacato e atrofiado de um país e de um povo que vivia em medo, um amor que tem medo de amar, com protagonistas egocêntricos e vanguardistas. Pessoas desafiadoras, mas que parecem seguir umas estranhas leis da atracção, como se o amor que de vez em quando experimentam, fosse combustível para anos de afastamento...
"Todo o amor só o é se houver a possibilidade da sua impossibilidade."
Perante a impossibilidade de crescer num país e numa carreira, ambos os cenários castradores e tacanhos, os protagonistas tomam os caminhos mais curiosos. É nas reuniões do grupo de amigos que ficamos a conhecer algumas das suas preocupações, do país e do mundo em geral. A forma como a ciência avança, lá fora, a castração politica e de todas as formas de liberdade, cá dentro. É um avanço em geral em comparação com o medo que põe em causa muitas vezes o amor à pátria e incentivam o desejo de partir... curioso como até isso é actual.
Será também este amor, ora quente e fatal ou frio e desapegado uma metáfora para o amor a Portugal!? Mas pulando para o fim, se tantos séculos tem Portugal, quantas mais vidas precisará o país, a política... e nós, para vivermos outro Portugal!?
Também neste aspecto o livro é muito revelador e questionador.
O que me deixa com outra questão: o amor é sinónimo de liberdade? a liberdade é sinónimo de vida? É essa a mensagem com a idade, com a aprendizagem de tão longa vida!?
Confesso que este livro tem muito de belo, pelo brilhantismo de alguma passagens, como tem algo que me irrita, pela forma como o romance se desenrola... há uma certa pacificidade que só compreendo se for o espírito do momento histórico do país que se apoderou das personagens, senão de que forma se explicaria que duas pessoas tão decididas e confiantes, pelo menos Ema, não resolvesse logo tal "enigma"... mas deve ser só a minha falta de romantismo a falar.
As lições de ciência, de política, de jornalismo e crítica social são mordazes, bem metidas, elucidantes, outras até aliciantes. As passagens nos primeiros anos de amor são excelentes, bem como algumas recusas e portas na cara, ou ainda, passagens sobre a escrita e os rasgos de criatividade como comprimidos mágicos que alimentam a vida.
"Escrever é, acima de tudo, dar a conhecer o impossível que existe em cada um. A possibilidade infinita, ou a impossibilidade finita que se multiplica em todas as direcções e a que, cada um, não consegue dar valor. Alguém exterior escreve-o. Permite encontrar um sentido percorrido, mas até aqui por nomear.
As palavras são como o corpo humano, cheias de contracções. A forma mais comum que o corpo arranja para se defender é contraindo-se. O segredo é arranjar cabimento na contração (...)"
Uma leitura com o apoio,
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