Havia algo, como que um julgamento prévio, uma mania, algo que me atrasava para chegar até ele. Por vezes, é assim. São coisas, coisas sem nome, ideias que se nos metem na cabeça, como se o imaginário e a divagação assumissem um poder sobre nós e obtivessem alguma razão.
Depois, ao primeiro contacto, na primeira vez que o abri, dei de caras com um enorme registo cronológico e isso aliado à ideia de romance histórico, carregado de vidas fortes, personagens marcadas pelo sofrimento e a história de gerações... pesou-me. Fez-me fechar-me na minha ignorância e procrastinar perante este belo livro por mais uns dias.
Felizmente, numa noite de alguma arrelia, abri-o e fiquei encantada, emocionada, envolvida na voz de um gaiato, de um alentejano com ânsias de médico e de corpos jovens. Uma história com um emaranhado de vozes que me povoou o imaginário e me conquistou.
Gabriela Ruivo Trindade teceu, com mestria, beleza e vozes muito fortes, um romance que atravessa gerações, mas mais ainda, atravessa a história de um país e nos transporta ao Alentejo. O Alentejo que tantas vezes renego pela brutidade e a dureza, mas que depois me apaixona cada vez que se torna num Alentejo literário, extraordinariamente bem descrito, pelas pessoas e vidas que o povoam.
Um romance onde a ruralidade, a aspereza do (quase) nada e a luta pela dignidade se tornam a melhor história de amor.
Durante inúmeras e longas páginas não fui capaz de parar, só queria conhecer mais, embrenhar-me mais... sentir mais cada personagem e o que a sua voz tinha para me contar.
"Dores, dores, dores. Não oferecemos senão dores.
E elas, as mães, recebem-nas, tomando-as nos braços de mansinho. E pronto. Já passou.
Não há remédio igual no mundo.
(...)
Mas esta, mão, não ta posso dar.
Não te posso dar a dor de um filho sem pernas.
Esta dor vai matar-te, mãe."
Não consigo tecer preferências. Tanto me apaixonei pela ânsias e risos do Zé Eduardo, como pelos segredos da Lídia ou a luta de Álvaro. Talvez a profundidade do sofrimento de Mena, a vida madrasta de Donana e o grande vazio na vida de Mariano, sejam dores marcadas demais, mas que pela beleza dos amores que todos viveram, ficamos rendidos às suas vozes.
" (...) meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas.
Sempre foste melhor amante da literatura do que dos ideais revolucionários.
Ou deveria antes dizer que o picante dos ideais revolucionários não te impediu de saboreares o tempero da boa literatura. E, dentro do mundo da literatura e da poesia, és especialmente romântica. Pena que o não sejas fora dos livros. Comigo, pelo menos." (pp.119)
De olhos secos terminaram algumas das vozes que aqui se prenunciam. É maravilhoso, abrir e conhecer este poema de Cecília Meireles e ver nele, verso por verso, todo o enredo, toda a força destas vozes, mas mais a de Mariano, com a sua partida para África que tanto indignava Mena.
"A gente deixa de temer a morte no instante em que passa a desejá-la, com o mesmo ardor com que desejamos as mãos do homem que amamos. Um ardor que nos faça esquecer a dor de existir. (...) Quis morrer também. Mas era jovem, e a juventude é o melhor remédio contra a morte. Por isso continuei vivendo como se morresse." (pp.194)
(...)
Morrer não custa nada; o que custa é não viver. A morte chega pelo ventre, vinda de fora para dentro, ao contrário da vida, que daí sai para a luz." (pp.281)
Um livro que recomendo, agora, sem quaisquer reticências.
Muitos parabéns à Gabriela Ruivo Trindade, é uma bela homenagem familiar.
Uma leitura com o apoio da LEYA
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