Páginas

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Uma outra voz, de Gabriela Ruivo Trindade - Opinião


Confesso, assumo as reticências que tive em me atirar logo de cabeça para este romance.
Havia algo, como que um julgamento prévio, uma mania, algo que me atrasava para chegar até ele. Por vezes, é assim. São coisas, coisas sem nome, ideias que se nos metem na cabeça, como se o imaginário e a divagação assumissem um poder sobre nós e obtivessem alguma razão.

Depois, ao primeiro contacto, na primeira vez que o abri, dei de caras com um enorme registo cronológico e isso aliado à ideia de romance histórico, carregado de vidas fortes, personagens marcadas pelo sofrimento e a história de gerações... pesou-me. Fez-me fechar-me na minha ignorância e procrastinar perante este belo livro por mais uns dias.

Felizmente, numa noite de alguma arrelia, abri-o e fiquei encantada, emocionada, envolvida na voz de um gaiato, de um alentejano com ânsias de médico e de corpos jovens. Uma história com um emaranhado de vozes que me povoou o imaginário e me conquistou.

Gabriela Ruivo Trindade teceu, com mestria, beleza e vozes muito fortes, um romance que atravessa gerações, mas mais ainda, atravessa a história de um país e nos transporta ao Alentejo. O Alentejo que tantas vezes renego pela brutidade e a dureza, mas que depois me apaixona cada vez que se torna num Alentejo literário, extraordinariamente bem descrito, pelas pessoas e vidas que o povoam.
Um romance onde a ruralidade, a aspereza do (quase) nada e a luta pela dignidade se tornam a melhor história de amor.

Durante inúmeras e longas páginas não fui capaz de parar, só queria conhecer mais, embrenhar-me mais... sentir mais cada personagem e o que a sua voz tinha para me contar.

"Dores, dores, dores. Não oferecemos senão dores.
E elas, as mães, recebem-nas, tomando-as nos braços de mansinho. E pronto. Já passou.
Não há remédio igual no mundo.
(...)
Mas esta, mão, não ta posso dar.
Não te posso dar a dor de um filho sem pernas.
Esta dor vai matar-te, mãe."

Não consigo tecer preferências. Tanto me apaixonei pela ânsias e risos do Zé Eduardo, como pelos segredos da Lídia ou a luta de Álvaro. Talvez a profundidade do sofrimento de Mena, a vida madrasta de Donana e o grande vazio na vida de Mariano, sejam dores marcadas demais, mas que pela beleza dos amores que todos viveram, ficamos rendidos às suas vozes.

" (...) meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas.
Sempre foste melhor amante da literatura do que dos ideais revolucionários.
Ou deveria antes dizer que o picante dos ideais revolucionários não te impediu de saboreares o tempero da boa literatura. E, dentro do mundo da literatura e da poesia, és especialmente romântica. Pena que o não sejas fora dos livros. Comigo, pelo menos." (pp.119)

De olhos secos terminaram algumas das vozes que aqui se prenunciam. É maravilhoso, abrir e conhecer este poema de Cecília Meireles e ver nele, verso por verso, todo o enredo, toda a força destas vozes, mas mais a de Mariano, com a sua partida para África que tanto indignava Mena.

"A gente deixa de temer a morte no instante em que passa a desejá-la, com o mesmo ardor com que desejamos as mãos do homem que amamos. Um ardor que nos faça esquecer a dor de existir. (...) Quis morrer também. Mas era jovem, e a juventude é o melhor remédio contra a morte. Por isso continuei vivendo como se morresse." (pp.194)
(...)
Morrer não custa nada; o que custa é não viver. A morte chega pelo ventre, vinda de fora para dentro, ao contrário da vida, que daí sai para a luz." (pp.281)


Um livro que recomendo, agora, sem quaisquer reticências.
Muitos parabéns à Gabriela Ruivo Trindade, é uma bela homenagem familiar.


Uma leitura com o apoio da LEYA

Sem comentários:

Enviar um comentário