Leia aqui as primeiras páginas.
Acasalei literalmente com este livro durante um breve período de cinco, sim só cinco, dias de férias. Bastaram esses dias para me perder no acasalamento proporcionado por Norman Rush e andar à solta pelas páginas onde a antropóloga americana se solta num Botsuana personalizado pelo intelectual e idealista Nelson Denoon. O carisma masculino e a persistência feminina povoam de forma marcante o lugarejo perdido e utópico no remoto deserto de Kalahari.
Julgo ser difícil definir este livro ou até escrever sobre ele. Lê-se na biografia do autor a sua experiência no Corpo de Paz no Botsuana na década de 80 e a questão de quanto do que aqui está escrito ser ou não ficção paira logo no ar. Não lhe retira qualquer valor, antes pelo contrário, dá todo um revestimento muito mais surreal e impactante.
"A África é acima de tudo baça e isso devolve-nos a nós próprios, inesperadamente."
Inesperadamente as próprias palavras que lemos também nos devolvem à nossa realidade, numa leitura existencialista e perguntadora. Cada vez mais gosto de livros que me deixam a pensar nas perguntas que levantam ao invés de "chegarem" e se afirmarem com respostas. Não sei se me faço entender, mas há toda uma introspecção ao longo destas quase 600 páginas, uma constante análise à condição feminina e às decisões que nos levam a tomar outros decisões. A essência de todo o livro está no título e com todas as consequências que o amor, seja ele físico, intelectual ou ideológico... têm ao longo da vida.
"Não sei se arrancar amor a um homem requer mais força hoje do que antes, mas por acaso até sei: requer. É horrível. É uma provação inenarrável."
A condição feminina e o papel da mulher está também bastante em relevo com a premissa e a utopia da comunidade em Tsau, uma comunidade essencialmente de mulheres e para mulheres, auto-suficiente e gerida por elas. Toda a ideologia que sustenta Tsau é uma «lanterna mental», um amor intelectual que guia a antropóloga até à comunidade e a faz ficar com Denoon.
Há também um acasalamento de índole política, facilmente inviabilizada quando as ideologias se apartam e as discussões passam a barreira do aceitável. A eterna questão política, capitalismo e socialismo, povoam inúmeras páginas, aliás eu diria até, que é uma folie à deux que o autor deseja que se espalhe a um maior número. A discussão intelectual é toda ela um bálsamo só equiparável ao bálsamo da solidão atingido no isolamento da comunidade.
Tsau é um hino à simplicidade e eles completam-se, discutindo e acasalando. Se uns relatos assumem um tom mais sardónico, outros serão mais herméticos. Kant, Engels, Marx ou até Thoreaux, ora nos puxam ora nos afastam da conversa em que desejamos participar. A religião e a sociedade, "sociedade, esse inferno de salvadores", são também temas a que acidentalmente o casal vai parar e nunca ficam por ali... já que ela nunca se entedia:
"Uma coisa atraente em mim é que nunca me sinto entediada, porque, em qualquer pausa, disponho do meu passatempo pessoal e automático para me entreter, que é questionar os meus próprios motivos."
Todo o livro é maravilhoso, complexo, intenso, brilhante e divertido. Os amantes têm inclusive um dicionário quase que para uma linguagem própria, especialmente ela que vai registando formas de o compreender, até mesmo naquilo que Denoon não diz!! É impressionante o detalhe com que Norman Rush se coloca na mente feminina e escreve magistralmente.
Do deserto de Kalahari chegam-nos sonoridades desde os Platters ao reggae de Jimmy Cliff ou à intemporal Joan Baez, que gostei de recordar com «La Llorona» ou « 500 milles».
De lá ficam-nos também cenários como este:
"(...) o Denoon engendrava vinganças engenhosas contra os miúdos fariseus do bairro, que pareciam adorar atormentá-lo e impedi-lo de ler sem interrupção nas casas que ele construía nas árvores como salas de leitura (...) ler era uma das religiões dele."
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Uma leitura com o apoio QUETZAL.
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