Li «AS REPUTAÇÕES» de Juan Gabriel Vásquez de uma assentada e recomendo bastante a sua leitura. Julgo ser difícil que se faça de outra forma já que o texto flui de forma viciante.
"Ele já quase nunca vinha à cidade e habituara-se a olhar o mundo através dos ecrãs e das páginas, a deixar que a vida viesse até si em vez de a perseguir nos seus esconderijos (...)
Sim, a cidade era outra. Contudo, não era nostalgia aquilo que embargava Mallarino quando constatava as mudanças, mas um curioso afã por suster a sua própria entropia interior, a lenta oxidação dos seus órgãos, a erosão da sua memória reflectida na memória erodida da cidade: (...)
O maior caricaturista político da história colombiana tinha sido devorado, como tantas outras figuras, pela fome sem fundo do esquecimento. Também de mim se esquecerão um dia, (...)"
É nesta fome sem fundo e neste parágrafo, que para mim fica tudo dito, ou seja, desde o início vemos o passado e o futuro de Mallarino e em função disso acompanhamos as decisões e compreendemos as suas divagações do personagem.
É um livro pequeno mas que abarca tanta coisa grande. A força do desenho de opinião que pode mudar passados e mover futuros.
"- Ricardo Rendón, o meu mestre - apressou-se a dizer -, comparou certa vez a caricatura a um aguilhão, mas forrado a mel."
Através do traço que denuncia, Mallarino guia o seu trabalho com esta bússola, exprimindo assim o que o preocupa, mas também o que o faz rir, apelando ao humor negro característico do cartoon.
"- Ouça - disse Mallarino -, vivemos tempos desnorteados. Os nossos líderes não andam a liderar nada, e muito menos a contar-nos o que está a acontecer. E é aí que eu entro. Conto às pessoas o que está a acontecer. O importante na nossa sociedade não é o que acontece mas quem conta o que acontece."
As polémicas, as reputações, os jogos de poder e a necessidade de denúncia política, juntamente com o procurar uma outra versão dos acontecimentos... é com o que Vásquez constrói uma intriga muito pertinente com questões ainda mais pertinentes face aos eventos que têm marcado a actualidade. Recorde-se a polémica e os atentados em torno dos desenhos do Charlie Hebdo que ocorreram pouco depois do lançamento deste livro e que colocam todo um novo enfoque na importância da liberdade de expressão. No entanto, o livro lança também outras questões, sobretudo a importância da busca pela verdade.
Vásquez cria imagens marcantes com determinados parágrafos, imagens que nos fazem sentir conhecer os personagens.
"Há mulheres que não conservam, no mapa da sua cara, nenhum traço da menina que foram, talvez por se terem esforçado muito por deixar a infância para trás (...) talvez por entretanto algo ter acontecido, um desses cataclismos íntimos que não moldam uma pessoa, antes a arrasam, como a um edifício, e a obrigam a construir-se de nodo desde os alicerces."
A escrita do autor é especialmente visual quando Mallarino descreve os cartoons que criou, tanto com um traço espicaçante como humorístico. A própria intriga tem também os seus momentos de humor, mas julgo que com as questões que levanta, Vásquez pretende convocar o leitor para uma reflexão mais critica da sociedade, olhando às fragilidades e ao lado efémero das reputações bem como para as relações entre os poderes instituídos.
"(...) a humilhação, toda a humilhação, precisa de uma testemunha. Não existe sem ela: ninguém se humilha sozinho, a humilhação a sós, não é humilhação."
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No dia 8/7 o autor recebeu o Prémio Literário CAL/Grupo Lena, na Casa da América Latina e no dia 11/7, esteve na Fundação José Saramago, à conversa com o realizador e escritor espanhol Javier Rioyo.
- Discurso na Casa da América Latina
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Esta leitura teve o apoio da ALFAGUARA | Penguim Random House Grupo Editorial
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