"O vendedor pensou mal de si; pensou que a deferência que lhe notara nos olhos fora coisa engolida pelo bolor da solidão..."
"Firmino jurava ao tio que nascera para estar ali, para ser aquele homem, e não o que fora parido tão pobremente. «Quem fabrica os destinos também tem direito a errar uma vez ou outra. O meu, como vinha enganado, foi preciso emendá-lo», disse ao tio com sorriso de troça, enquanto sorvia copos de champanhe.
Não se engane é o leitor e fique com este livro por ler!
Carlos Campaniço regressa ao Alentejo, criando um cenário de uma terra típica como muitas outras alentejanas, como a sua Safara, numa época onde as lides da recente República se sentem na presença da Guarda Nacional Republicana. Neste caso, a mãos com o homicídio de Firmino António Pote, de sua alcunha ou baptismo popular, Dom Rufia ou também Dom Morto. Mas que não lhe caia o nome em desgraça e perca o Dom, pois tudo este homem fez para obter melhor título e posição social. No entanto, talvez o charme e o bigode fininho lhe atrapalhassem os planos, já que as mulheres foram muitas e quase lhe arruinaram o dom da ubiquidade.
Na ânsia de enganar o destino e os corações de quem se perdia de amores pelos seus atributos, Dom Rufia foi conseguindo troçar do destino e inventar uma nova vida. Uma não! Uma por cada vila alentejana e respectiva mulher. Podemos até dizer que ele reencarna a ideia do homem dos sete ofícios sem ter tido ofício nenhum.
"Lembro-me como se fosse hoje como se iniciou no contrabando e na venda de canários do Brasil.
Aquelas palavras, ditas em tão sossegado ar, foram uma espécie de toque de cornetim. A gente que estava apardalada sacudindo o sono e pôs-se em sentido, ademais falava Teresina e ela podia não gostar que não se desse atenção às suas lembranças, sendo essa uma forma usual de pranto."
Maria Teresina, tia e mãe de criação de Dom Rufia é a meu ver, a personagem feminina com mais personalidade, as cenas que têm acções suas são sempre de risada total. Aliás todo o livro está repleto de humor, não só pelas aventuras do próprio Firmino, como pelo uso rebuscado da língua, que lhe dá toda uma outra graça. Através de todas as outras mulheres o leitor sabe, pela voz do narrador, das fanfarronices e das diatribes persuasivas do personagem e somos incapazes de não rir e não nos divertirmos com ele.
Todo o livro tem o velório a pano de fundo, mas todo ele tem uma aura sarcástica e humorística, pela forma como se vai sabendo da vida deste alentejano peculiar, para não lhe chamar mentiroso.
"Com uma educação treinada para angariar simpatias, e depois de tanto contacto com os melhores salões e as mais educadas famílias, os gestos e os dizeres de Firmino deixavam as senhoras deleitosas. Um homem gentil e importado com as mulheres, num tempo de maridos afirmativos, era uma sombra naquele grande deserto que era a igualdade de géneros, onde nem a palavra nem o conceito haviam ainda sido inventados."
De Fernão Baixo como vendedor de canários, a passagens por Évora para actividades ilícitas, ou em Alvito para lides de médico, Firmino foi sempre surpreendendo, juntamente com um conjunto de personagens, umas mais especiais, outras com um toque de surreal, uns bonacheirões, outros mais pantemineiros, o que é certo é que o rol delas é afinado perante a exigência de cada situação. De destacar são também os nomes de cada um que só por si colocam logo um sorriso no rosto do leitor.
Senti até que toda a intriga se chega muito próxima à mestria do autor em «Os Demónios de Álvaro Cobra», dando, sem dúvida, um enlevo diferente a este livro que desencabresta o leitor. ;)
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Em função de algum alentejanar talvez possa o leitor sentir curiosidade e desejar a consulta mais atenta deste Dicionário Alentejano. Para a leitura do livro, é claro!
Um livro CASA DAS LETRAS | LEYA
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