Li na Islândia, este romance de Eduardo Belgrano e senti em certos momentos que me encontrava em paisagens semelhantes àquelas que me apresentavam a Terra do Fogo. E isso, é algo a que ficarei apagada, tanto ao que vi lá como aos momentos em que me sentei e absorvi aquele silêncio quase ancestral, para ler este relato de violência, mas também de ode à Natureza e aos povos indígenas. «Fuegia» ou «Para lá da Terra do Fogo» é um romance baseado em factos verídicos denunciando as provações pelas quais passaram os indígenas da tribo Kawésqar ou Alacalufes.
Esta é uma narrativa de apelo à memória, para que as Nações não se construam com base no esquecimento e na violência que perpetuaram contra os povos indígenas, sempre em função da prosperidade, do dinheiro e da conquista de soberania.
"De vez em quando estalava a polémica. Durante algumas semanas os diários vociferavam. Por ocasião de uma daquelas gritarias um cura piedoso escreveu a Buenos Aires. «De que serve remoer tudo isto? Já não vamos ressuscitar os pobres infelizes. E aqueles que os mataram já não estão entre nós. Mas agora convivemos com os seus descendentes. Querido padre: não temo a verdade. Mas prefiro dizê-las entre linhas, para não faltar à caridade."
O cenário com que arranca o enredo é o mais próximo da Natureza possível, em terra de guanacos e sobrevoados por procelárias, os canaleses e os parrikens, os pescadores, os ovelheiros, os ladrões e os aventureiros convivem numa paz fragilizada e tão instável como as águas das quais desconheciam a profundidade.
Os naufrágios e os mortos não seriam de forma nenhuma mais do que aqueles que morreram às mãos de novos povoadores e conquistadores, naquela que ficou conhecida com a matança de Lackawana.
"Da coberta avistavam-se perfeitamente os caranguejos que caminhavam no fundo. As margens povoadas de mirtos e o vento trazia com frequência o estalar das geleiras. Noutros tempos estes lugares tinham sido os melhores sustentáculos das goletas que andavam à caça de lobos-marinhos, quando disparavam de uma velha lancha a vapor em busca de caçadores furtivos."
O primeiro desafio deste livro é mesmo a linguagem riquíssima e até certo ponto específica com que o autor classifica e descreve de tudo um pouco. Entre kauwi, wigwam, corcovos, baldões ou caldeiros, goletas e escunas e os seus capitães gritadores; o enredo adensa-se e os costumes e afazeres de todos eles propalam-se e sentimo-nos um tanto perdidos. E para além deste choque inicial, é abraçar o desconhecido juntamente com todo o emaranhado de personagens que à semelhança de uma rede de pesca nos enrolam e caçam. No entanto, há uma personagem que se destaca, Camilena Kippa e a sua inesgotável capacidade de persistir.
"As pancadas que sentia nas costas indicavam que Camilena remava freneticamente. (...) Deu um par de remadas precisas. A canoa rolou perigosamente e acomodou-se ao seu novo rumo. A escuma foi atrás deles numa manobra elegante. Isso incomodou a canoeira. As escunas lobeiras viraram pesadamente enquanto os seus tripulantes praguejavam. Mas a escuna voava. Não havia cachiyuyos nem escolhos (...).
Camilena nem se virou para trás. Sentia sobre os ombros o olho maligno do homem da proa e esperava a explosão da sua Winchester."
Para além da força de Camilena há também toda a força da narrativa que Belgrano Rawson conduz com mestria e exige ao leitor atenção e entrega. O livro está repleto de uma poética irrefutável que atinge o leitor com a beleza descritiva de imagens que evocam outros tempos.
"Cada vez que via uma mulher a arranjar o cabelo pensava na sua avó. Recordava as suas irmãs a penteá-la com esmero, até o seu cabelo ficar com a cor de uma tempestade. Às vezes untavam-lhe o cabelo com tutano de cria de guanaco perfumado com violetas"
"Camilena descobriu a boneca de Isabela no chão e saiu-lhe um gemido do peito. (...) perguntou a si mesma se a morte dos seus filhos seria capaz de a matar. (...) Eram meditações difíceis, pois não havia maneira de esquecer por completo a uma pessoa morta, por mais que uma pessoa não dissesse o seu nome ou queimasse as suas coisas e matasse os seus cães."
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Em 1992 este romance arrecadou o Prémio da Crítica e em boa hora foi cá publicado. Em 2009, quando o autor participou no LEV e agora finalmente, chegou-me às mãos. Recomendo vivamente a sua leitura e acredito que fará as delícias de muitos leitores. E também de alguns viajantes.
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Um livro QUETZAL|Grupo Porto Editora
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