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quinta-feira, 21 de julho de 2016

«Uma senhora nunca» de Patrícia Müller :: Opinião



Patrícia Müller cativa-nos desde logo pelo título sugestivo. «Uma senhora nunca» parece inacabado, como que lançando uma pergunta ao leitor ou até, pedindo-lhe uma resposta, oferecendo depois nas suas páginas a confirmação, ou não, do que podemos pensar que uma senhora nunca deve fazer, pensar, sentir...

"Nunca suportou a ideia de que um comportamento seu pudesse ser alvo de crítica. A santidade é uma prática e não um conceito longínquo. (...) A religião é a psicanálise de uma senhora."

Neste primeiro contacto com a escrita de Patrícia Müller fica desde cedo a certeza de uma narrativa espirituosa, pautada de um humor peculiar, elevada crítica social, que mesmo de época, se estende até aos nossos dias e de um enredo cativante e envolvente.

"Maria Laura sentiu-se encurralada (...) imagens do fatídico dia perseguiam-na. Nunca tinha sido feliz, mas durante muito tempo foi essencialmente triste."

De forma sôfrega vamos devorando esta narrativa que não nos oferece respostas, antes pelo contrário, assalta-nos com novas questões que temos medo de não ver respondidas devido à demência que vai atacando Maria Laura.

"A mente é o mais formidável órgão que Deus fez», Maria Laura repete isso nas intermitências da lucidez (...)"

"Maria Laura tem uma carroceira dentro de si e ela não sabia. E não sabe onde é que a carroceira aprendeu a bíblia do vernáculo. (...) Lucinda fica petrificada de horror diante deste cenário (...) sem a Maria Laura introvertida, moralista e tristonha, alguém tem de gerir a espiritualidade da família."

É essa família que vamos conhecendo através de capítulos de fervilham de detalhes e novos tentáculos que envolvem e acrescentam emoções, acontecimentos, tragédias, decisões, amores e obrigações que foram determinando a vida de Glória e Policarpo, os pais de Maria Laura; a vida com Carlos e o enteado e até a sua filha Lucinda, de todos nos vamos tornando íntimos, aceitando a duplicidade e os segredos que os saltos temporais revelam.

"O barroco de Maria Laura também vem da avó Augusta. Nunca lhe deu um abraço, mas ensinou-a a espremer o sumo trágico de qualquer acontecimento."

"É a tarefa mais árdua, mesmo para Maria Laura: fazer da duplicidade escancarada uma ideologia que converta qualquer alma à religião que ela propagandeia, a apologia do segredo."

Este «Uma senhora nunca» pode muito bem elogiar e propagandear os segredos e os pecados familiares e até uma certa mesquinhez que daí advenha, mas em altura alguma se perde no melodrama familiar, pois Maria Laura é uma personagem fortíssima, uma senhora que tenta superar todas as neuroses próprias da vida que escolheu, empurrada pela época, mas também por Policarpo e Glória.

"O coração de Policarpo descobriu-se totalitário com a mulher e concretizou-se ditador com a filha."

Maria Laura é uma senhora, mas foi também filha, esposa, neta, avó, foi mais ainda, quando sem deixar de ser uma senhora, foi simplesmente mulher.

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Este texto foi publicado no Deus Me Livro, para a rubrica Mil Folhas, confira aqui.

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