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"Era dele, dele!, aquela enorme casa, um mundo de recantos e desníveis, de portas e postigos, de passagens e escadas, de corredores e impasses, por onde podia, se quisesse, andar livremente, cosido às paredes como um espião, ou todo-poderoso como um fantasma, onde podia abrir todas as portas, deitar-se em todas as camas, repousar em todos os sofás, refrescar-se em todas as casas de banho, olhar para o seu feio corpo em todos os espelhos."
Para além da arquitectura e de uma certa adoração aos ornamentos e ao detalhe, existe todo um lado carnal e de retoque erótico que vai alimentando uma curiosidade no leitor, especialmente pelas preferências escopofílicas de Heliodoro. Cedo ficamos a perceber o seu desejo incontrolável de observar. Percorremos corredores, subimos e descemos escadas juntamente com este personagem longilíneo e leptossómico, na ânsia de, entre coisas não ditas e lições de arquitectura, possamos compreender o jogo erótico que se poderá esconder por detrás de tão misterioso espelho.
"(...) e tudo se decidiu num intervalo de tempo, mas também num lugar preciso, uma casa, porque a escopofilia, diferentemente de outras orientações sexuais, resulta directamente das características do espaço que separa o olhador do objecto olhado, do modo como a luz ilumina certos lugares e se afasta de outros (...), quer dizer, a escopofilia é uma pulsão arquitectónica e arquitectada, a ponto de o lugar (...) adquirir uma intensidade erótica que subsiste muito para além do olhar."
Paulo Varela Gomes escreve prodigiosamente, o impacto da linguagem e o poder de inúmeras descrições conferem à narrativa toda uma outra dimensão e profundidade, tal como a Joaquim Heliodoro. O enredo não avança durante inúmeros capítulos, mas no entanto toda a erudição alimenta o leitor com curiosidades e conhecimentos que se tornam suculentos e completam muito bem a acção.
"Disse ao casal, o seu fascínio quase hipnótico pelo exercício da erudição, uma espécie de arte de memória e da minúcia, nas suas palavras, uma arte ao mesmo tempo de arquivista e de presciente (...). O erudito é aquele que faz melhor uso do arquivo da memória. (...)
(...) a remissão para autores ou fontes não prova nada, só prolonga a espiral do conhecimento, vertiginosa e sem destino, sem fixação possível."
É com Heliodoro, Margaret, Laszló Batory e Manuela que andamos nesta espiral, que se prolonga num livro maravilhosamente hábil, inteligente, delirante, intrincado e divertido que ora esconde, quase que por pudor, ora desvenda e explica de forma enciclopédica e explícita e vai mimando o leitor, tornando-o ele mesmo num voyeurista dissimulado, mas viciado nos pequenos alarmes que se vão acendendo à medida que o mistério avança.
"O observador começa por ser confrontado com uma porta muito velha, perfurada por dois orifícios, através dos quais só uma pessoa de cada vez pode aceder à vista, uma função privada característica do voyeurismo. (...) os lábios do seu sexo estão mesmo em frente da abertura da parede. Todo o dispositivo está construído de modo rudimentar, mas a figura poderia ser interpretada como vítima de um crime..."
Se quisermos podemos ainda olhar a este hotel, com os seus quartos e corredores, dignos de desencontros e conjugações que entre si permitem diversas orientações ou atalhos para o enredo. O enredo é a vida. O hotel é a vida de Joaquim Heliodoro, a obra que um homem pensa, desenvolve e na qual toma parte, um legado, um feito para observação e contemplação póstuma. Em paralelo com estas conclusões, mais para o final do livro, existe um capítulo fabuloso que encerra em si, exactamente, esta noção de que a vida é uma combinação de desencontros e conjugações.
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