«YORO» de Marina Perezagua é inquietante, visceral, duro, apaixonante, vibrante, desconcertante, anguloso, (digo eu) inovador, resiliente, descritivo, ritmado, fascinante, onírico, labiríntico, visual. contemporâneo, sofredor, real e altamente inclassificável, entre o horror do que descreve e a beleza da escrita.
É também bastante difícil de dosear a leitura, já que é extremamente viciante toda a relação descrita, ficando o leitor no meio de sensações e sentimentos complexos, dúbios, duros, violentos, mas a curiosidade é constantemente aguçada e não queremos parar. O crime é confessado logo ao início e toda a sua defesa, toda a carta, é um relato de nove meses, que são anos, anos de vida sofrida, entre horrores diversos e uma busca incessante.
"O problema é essa superioridade que qualquer rótulo parece ter pelo simples facto de ter sido aceite como tal, de ter sido impresso. É isso que, às vezes, me parece a nossa vida em sociedade, tudo consiste numas quantas pessoas se porem de acordo e estarem dispostas a pagar pelas letras que formam o nome do seu colectivo numa t-shirt ou num boné,
As possibilidade do indivíduo, do solitário, são ínfimas, porque representarmo-nos a nós mesmos fica muito caro. Hoje falam de minorias. Mas eu rio-me da exclusão das minorias. A verdadeira marginalidade é a que sente quem não tem acesso sequer a um grupo minoritário. O mundo é feito de grandes minorias, mas durante muito tempo, eu estive radicalmente só."
É nessa solidão que vamos conhecendo H.; H. de Hiroxima. Mais tarde conhecemos Jim e também Yoro, mas no intermédio, nas entrelinhas, nos vários meses de espera, que são efectivamente anos, tudo se doseia neste testamento de horrores que é a carta de H. ao seu carrasco, a quem a condena. No entanto, esta longa missiva pretende angariar admiradores ou talvez entendedores, para a sua causa, para a sua dor, a sua busca interminável e a cura das suas falhas.
"É uma espera necessária, porque aquilo que o senhor vai saber antes de acabar de me ler é tão difícil de explicar que não conseguiria compreendê-lo se eu não fosse doseando a informação que, gota a gota, se irá sedimentando na sua consciência até à estalactite do seu significado rasgar esse momento em que uma pessoa entende o que só com o sedimento do tempo se pode entender."
Não podemos negar que H. nos avisa para a dificuldade do que vai pautar as páginas do seu último relato, no entanto, o tempo não é o suficiente para sedimentar um lugar de espectador para o leitor neste palco de horrores espalhados pelos mais variados cantos do mundo.
"A enfermeira desatou a chorar sem saber o que fazer com aquela meia sem perna, não se atrevia a deitá-la fora, a deixá-la de lado, pois certamente, tal como eu, continuava a ver a perna lá dentro.
De novo, a presença da ausência enchia tudo ao ponto de fazer de todos nós uns seres inúteis que nos dedicávamos a cuidar do que já tinha deixado de existir."
Esta história é sem dúvida a de coisas que existem, mas estão despedaçadas, ou de cacos que tentam encontrar o pedaço que lhes falta, se é que ainda têm a possibilidade de se unirem para formar um todo. «Yoro» é uma narrativa fragmentada, como uma colecção que foi perdendo peças, umas fruto da confusão do tempo, outras furtadas pela ganância alheia e no final, há uma coleccionadora peculiar que deseja reunir todas essas peças, nem que seja para obter um fim de vida mais pacífico e completo.
"Mas olhava para o chão, o tempo todo para o chão. Tentei justificar isso e, para o tomar como sintoma da sua alegria, pensei que olhar para baixo é o contrário da tristeza. Olhar para baixo - dizia a mim mesma para me convencer - é festejar a última pegada, o presente mais presente, o rebento da erva que há dois passos estava debaixo da terra.
Uma pessoa olha para o céu e não vê nenhum nascimento. Vê despertares. Mas isso é outra coisa. O sol que volta a surgir é um idoso que nasceu há milhões de anos. Para ver os nascimentos, temos de nos centrar no pequeno, muitas vezes no chão, no aparecimento de um cogumelo, num formigueiro, na fenda por onde a borboleta rompe o casulo. Pensava que ele poderia ver tudo isso, e que se alegraria com cada parto. (...)"
Este registo meio onírico, criando um registo peculiar e traçado por alguma loucura mantêm-se ao longo de todo o romance e confere-lhe uma lucidez muito própria, fazendo com que as divagações de H. sejam questões para o leitor se debater e que ficam a ressoar, nomeadamente a da importância de mantermos acesa a chama da loucura.
"A isso respondo-lhe que é verdade, que hoje, nos dias em que escrevo este testemunho, sou muito velha, mas, como a minha cabeça parou durante muitos anos, como teve um descanso e adormeceu na sua loucura, não está tão desgastada como outras da minha idade, como a sua, que certamente nunca adormeceu no sonho da reparadora insanidade, porque os loucos quando deixam de raciocinar, deixam de produzir, soltam-se da corrupta engrenagem social..."
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Um livro ELSINORE.
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