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segunda-feira, 3 de julho de 2017

«A bofetada» de Christos Tsiolkas :: Opinião


Li este calhamaço (538 páginas) nuns poucos dias de férias e só pensava numa questão: quantas camadas de pele é que esta bofetada atinge?
Muitas, com certeza. Só pode. A dureza e a realidade que Tsiolkas narra são tensas, explosivas e algumas até amorais, no entanto, convivem lado a lado com vidas que se assemelham a perfeitas, famílias supostamente felizes, boas categorias profissionais e educação de filhos menores. Mas o leitor que não se engane, este livro não traz uma bofetada só, traz muitas e de variada intensidade, algumas chegam até sem ruído algum. Resultado: o leitor sai um bocado amassado e um tanto menos esperançoso nas pessoas e na sociedade, mas literariamente falando, sai muito rico. 

"Sem abrir os olhos, sentindo um sonho a dissolver-se tão rápido que já nem se lembrava de qual era, Hector levou uma mão ao outro lado da cama, num gesto indolente. Óptimo. Aish já se tinha levantado. Soltou um vigoroso peido, enterrando o rosto bem fundo na almofada para fugir ao pegajoso fedor."

Indolente é cada capítulo, um melhor que o outro, onde cada personagem em destaque aumenta a tensão do episódio inicial. Harry dá uma bofetada numa criança, Hugo de aproximadamente quatro anos, um menino que não é seu filho. O chocante, para além deste acontecimento, são as opiniões que se dividem pelos mais variados motivos. Nesses motivos, vamos destapando as vidas, as relações e a mediocridade de cada um no seio da sua privacidade. Nenhuns são isentos de podres e segredos e cada capítulo explorará de forma brilhante a mentira, as drogas, os lados profissionais menos bem sucedidos, as expectativas de futuro que saíram frustradas, a violência doméstica, o álcool e a velhice, tudo muito bem esmiuçado como se de uma doença degenerativa se tratasse e que os fosse consumindo. Mirrando-os de forma a já só se ver o que resta, o que não podem esconder mais. 

"Abrira a porta e olhara para a rua. Era Verão, havia sol e o ar estava parado e não se via vivalma. Ficara na entrada durante uns bons dez minutos, de mala ao ombro, de punho fechado sobre as chaves, a contemplar o mundo. Não és livre, dissera a si própria. Se queres sobreviver a isto, se não queres matar-te ou matar o teu filho, tens de perceber que não és livre. A partir de agora, até ele poder virar-te as costas e afastar-se de ti, a tua vida não significa nada - a vida dele, é a única coisa que importa. Fora então que dera um passo atrás e fechara a porta, deixando lá fora a rua, o mundo."

Sem dúvida que é de punho fechado e de pedras na mão que vamos encontrar algumas destas personagens, tanto Harry como Hector, ou Gary, são homens destroçados, mas as suas mulheres também não o são menos. Os pedaços que vão sobrando de eventos violentos e do passar dos anos vão deixando mágoas e buracos que não se podem tapar. Mas no final importarão? Que peso deixam essas marcas quando se chega à velhice?  
No capítulo dedicado a Manolis, pai de Hector e sogro de Aish, que reflecte o passar do anos, julgo que certas conclusões são igualmente uma bofetada, talvez de pragmatismo e aceitação.

"Manolis olhou em redor da cozinha. Koula cobrira as paredes com fotografias dos netos. Adam acabado de nascer, Melissa no Zoo, Sva e Angeliki na aldeia na Grécia, fotos da escola, fotos do Natal, os miúdos sentados nos joelhos do Pai Natal. Porque é que eles tinham de crescer? Cresciam e tornavam-se egoístas. Acontecia com todos eles, sem excepção. Manolis estava cansado; os homens viviam demasiado tempo (...) agarravam-se com desespero à vida. Se ele fosse um cão, já alguém o teria abatido com um tiro na cabeça."

Não há aqui tiros na cabeça, mas pouco falta. «A bofetada» é realmente um grande livro e que vale muito a pena ler.

"Iria ao armário dos medicamentos e encheria uma seringa com sessenta miligramas de Pentobarbital. Injectaria o anestésico líquido e verde num saco de soro fisiológico e depois prenderia o saco ao doseador. Regularia o débito do aparelho para o máximo. Depois, introduziria o cateter na veia, provavelmente no braço esquerdo, e ligar-se-ia o aparelho. Um morte esmeralda. Adormeceria, morreria. Continuava a achar que era o método mais humano para abater um animal; e o que eram os seres humanos senão animais?"

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