"Vi-a quando estava prestes a atravessar a avenida. Estava no meio de um monte de lixo, abandonada sobre as raízes de uma árvore. (...)
Peguei nela com as duas mãos, para não a desmontar. A caveira não tinha mandíbula nem dentes (...)
(...)
Comprei à Vera umas luzes decorativas, dessas que servem para enfeitar árvores de Natal. Não podia continuar a vê-la sem olhos, ou melhor dizendo, com os olhos mortos,e, por isso, decidi que dentro das órbitas vazias brilhariam luzinhas. Como são coloridas, vão mudando, e um dia a Vera terá olhos vermelhos, noutro dia serão verdes, e ainda outro, azuis."
Se já se riu, não se habitue.
Se por acaso se espantou, não se renda.
Se só se arrepiou, aviso desde já que se arrepiará mais e repetidamente.
Mariana Enriquez especializou-se na arte de bem combinar palavras para arrepiar o leitor, mas mesmo assim ser capaz de o viciar no macabro e no sórdido que, conto a conto, o vai envenenando para perder a fé nas pessoas.
O excerto pertence ao conto "Nada de carne sobre nós", que foi o primeiro e talvez o único a fazer-me rir, no entanto, todos os outros contos traçam histórias macabras e de um horror e bizarria bem mais malévolos que este. Ainda assim, Enriquez é capaz de satirizar e dar um tom humorístico ao que escreve, o que revela e eleva ainda mais a violência e o diabólico de cada acontecimento.
Em "Fim de Ano", por exemplo, vamos seguindo aqueles dias de aulas quase como se estivéssemos na sala, assistindo, pacíficos, aliás, como toda a turma e, sentimo-nos a pertencer a um grupo de sanguessuga que espera, avidamente, mais sangue e drama ... E como se não bastasse uma, no final, somos varridos por duas adolescentes que sofrem da mesma patologia e com uma só frase a autora é capaz de nos derrubar.
Derrubar-nos com os finais acontece em vários contos, quase como se nada preparasse o leitor para aquele embate, mas pior embate é ouvir a autora, com quem estive, estivemos, à conversa na Feira do Livro de Lisboa deste ano, e ouvi-la dizer que esta é uma Buenos Aires que existe e nem tão assim escondida, o que nos arrepia, seja com o primeiro conto ou com o último, que, se pensarmos bem são tudo formas medonhas de morrer e seguir vivendo.
"Quando o sol caiu, a mulher eleita dirigiu-se para o fogo. Lentamente. Silvina pensou que a rapariga se ia arrepender, porque estava a chorar. Tinha escolhido uma canção para a sua cerimónia (...). A mulher entrou no fogo como quem entra numa piscina, atirou-se, num mergulho convito: não havia dúvida que o fazia de livre vontade. (...)"
*
Um livro QUETZAL
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