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quinta-feira, 22 de março de 2018

«A Filha» de Anna Giurickovic Dato :: Opinião


"Errei, onde terei errado? Sozinha, eu não adormecia. Muitas vezes corria para o quarto de Maria com medo de que a tivessem levado, ela despertava com os olhinhos de sono e dizia-me: «Estou bem, mamã, estou aqui.» Tinha quatro anos e tentava tranquilizar-me. A uma mãe exige-se segurança, pensava eu, e afinal sentia-me como uma alga que ficou presa ao solo marinho por um fio, que se move bailarina dentro de água e cada onde que vem poderia ser a última."

É na voz de Sílvia que ouvimos esta narrativa, tão ambígua e insegura como a vida da tal alga baloiçante. Sempre com medo. Muito cheia de dúvidas. Plena de incertezas. Sempre pronta a ser abalada por mais uma onda. E serão várias as que arruinarão com o ecossistema perfeito que ela julgava ter construído.

"Sempre soube que nunca faria nada de importante na vida, que havia de ter uma existência apagada e que, sem muitos recalcitrares, me iria embora no momento certo, de uma morte banal e todos diriam: «Ah, era uma boa mulher», porque é o que se diz de uma mulher morta de que ninguém tem motivos para recordar."

Sílvia mulher e mãe está de luto pela morte de Giorgio, rememora os acontecimentos marcantes nesse oceano impoluto que julgava ser a sua vida familiar. Giorgio era áspero, mas sólido. Um marido estruturado, um pai extremoso. Amava-o muito. A filha, Maria, dava mostras de ser mimada, mas era adorável e meiga. Sílvia era uma mulher de existência apagada, mas uma boa mulher. 

Nessa existência dividida entre o amor e a dúvida, Sílvia relata as circunstâncias oblíquas da morte do marido e as marcas eternas que deixará na filha. Entre os seus cinco, seis anos e os treze, cresceu a criança meiga e a adolescente é agora um mar revolto de jogos perturbadores. António é um joguete, mas nem por isso deixa de ter vontades muito próprias. 
Entre tantas vontades fica sem espaço a vontade desta mulher que narra anos de uma vida perdida na letargia que a vai ancorando num sofrimento profundo. 

"Antonio, que está de costas e não sabe que eu fiquei aqui, paralisada à porta, acaricia-lhe a perna infantil. Ela cobre-se e depois desata a rir.
(...) Quando lhe perguntei: «Porque é que te conténs?», respondeu-me com ar ameaçador: «Tens de esperar. Ataram-me as pernas e já não posso fazer nada. A enfermeira quer dar cabo de mim, quer enfiar-me objectos no rabo.» E foi aí durante aqueles dias passados no hospital a desesperar-me, que, na fúria, Maria fez a sua ferida, a sua vírgula, o seu acento."

A letargia, a solidão e o silêncio de Sílvia pactuam com o desapego, o isolamento e a fragmentação  de Maria, que convivem, a paredes meias, com a dor e a loucura de Adele (a avó, mãe de Giorgio); todas envolvidas por uma teia de amor a Giorgio. E talvez seja esse amor, que continua mesmo estando ele morto, que desconexa e não liberta estas vidas, desfigurando-lhes o futuro e o ritmo.

"(...) O ritmo é uma necessidade. 
«Uma necessidade?»
«Todos os seres humanos procuram um ritmo em todas as coisas. A rotina é um ritmo. A tradição é um ritmo. (...)
«... dar uma regularidade às coisas. A repetição, os ciclos, tam tam
(...)
«O coração materno?», adivinhei.
«Tam tam», repetiu Maria divertida."


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