Doida Não e Não!
1918, Maria Adelaide Coelho da Cunha, mulher da alta sociedade portuguesa, filha do fundador do Diário de Notícias e esposa do então administrador, intelectual e poeta, Alfredo da Cunha; apaixona-se pelo seu motorista particular e enceta uma história escandalosa que foi levada a público bem ao jeito dos actuais casos mediáticos que enchem jornais e publicações diárias.A senhora de São Vicente, altamente reconhecida pelo modo como recebia a fina flor da sociedade, os influentes da época, é também destacada pela sua dedicada forma de declamar e interpretar as poesias do marido; lamentável é o facto de este marido austero e seco, nada a tratar bem e como merecia, já que lhe era conhecida a sensibilidade, os bons modos e a educação com que tratava todos à sua volta.
A sua fuga da vida familiar foi amplamente castigada, castrando-lhe a liberdade e o acesso aos bens. Digamos que Alfredo da Cunha, juntamente com os ilustres da Medicina julgaram-na fraca e facilmente arrumável num manicómio. No entanto, a sua finíssima educação e lucidez despertaram outros ilustres que levaram aos limites da época, à opinião pública, a sua história e necessidade de defesa.
"Cerca de dois anos mais tarde, numa entrevista à A Capital, Maria Adelaide justificou essa secura pelo facto de não acreditar que a sua ausência pudesse causar qualquer desgosto a Alfredo da Cunha «cuja severidade era de dia para dia mais acentuada, cavando entre ambos um abismo irremediável».
É precisamente nesse abismo e noutro ainda mais profundo, o do encarceramento, que encontramos a pesquisa rigorosa e detalhada de Manuela Gonzaga, transformada com esmero, de enredo e linguagem, num romance histórico cativante para o leitor. A forma como a autora constrói a narrativa, escolhendo e introduzindo frases e adjectivos, próprios dos intervenientes, transportam-nos à época e conferem outra dimensão aos testemunhos.
Os contornos de romance de cordel, a perspectiva do adultério, a fachada que podia ser o casamento e o uso dos poderes dos influentes, diz muito sobre a sociedade da época. Vejamos por exemplo o testemunho do médico e administrador do Conselho de Santa Comba: "Embora não justificasse uma queda nesta senhora, compreendia, no entanto, que ela tivesse relações sexuais com um chauffeur, contando que não saísse do seu meio, nem se prestasse a esta aventura de abandonar o domicílio conjugal e vir viver com o seu serviçal para um recanto da província."
Um coro de ilustre professa sentenças destas, pregando a moral cristã e os bons costumes, no entanto, encerraram uma mulher, enxovalhando-a e insistindo em humilhações e privações constantes, a título de terapêutica e tratamento, esperando dela uma confissão: ter endoidecido. Único propósito: restringi-la de todos os seus bens.
O internamento e a ilegalidade do facto, foram uma verdadeira saga. Bernardo Lucas, advogado e o diário do cárcere de Maria Adelaide vieram alimentar páginas e páginas de um escândalo que levou mais de dois anos a estar concluído, mas a interdição aos bens de família levaram muitos mais anos, bem como a desacreditação de outros familiares.
"Alfredo da Cunha, porém, entendia ser absolutamente necessário «desenterrar» os mortos da família da mulher, cujas desarticuladas biografias serviram para corroborar a tese da «pesada tara hereditária» que, na tapeçaria das gerações, manchava o sangue da senhora de São Vicente com uma «degenerescência»..."
A estudada degenerescência, atestou a passagem de adúltera a demente, valeu-lhe, digamos assim, a estratégia de defesa de Bernardo Lucas para levar a público na A Capital os textos que Adelaide escrever e que muito a devem ter ajudado a manter a sanidade.
"Portugal, anos 20 do século XX. Dois opositores, marido e mulher, ambos letrados, ambos muitíssimo famosos, manifestamente inteligentes e reconhecidamente sensíveis, vão a esgrimir um contra o outro, nos respectivos jornais ao seu serviço, com a mais letal de todas as armas. A palavra."
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