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quarta-feira, 11 de março de 2020

«As aves não têm céu» de Ricardo Fonseca Mota :: Opinião



"Que salvação tem uma alma que persegue a vontade cega de esquecer?"

É com a cabeça cheia de perguntas e "o retrovisor vazio para sempre" que conhecemos Leto. Atormentado, não suportando encostar a cabeça na almofada, é um homem em pedaços, com as sobras num remoinho e que reinventa a vida apenas para poder continuar a sofrer.

Leto perdeu a filha e sente uma culpa maior que tudo, uma dor que não encontra semelhantes. A dor é uma verdade diferente para quem a sente. A mulher de quem se divorciou, os amigos os pais, os sogros, ninguém entende a dimensão do seu sofrimento e Leto fecha-se na densidade de um sofrimento muito próprio e que o faz vaguear sem sentido.

"É censurável o facto de não sabermos morrer. Andamos a morrer há milhares de anos e ainda não sabemos como se faz. Seja castigo, prémio ou escárnio, ainda morremos de forma muito atabalhoada."

O estado de espírito de Leto é uma personagem só por si, a sua dor é tanta que se espalha por tudo à sua volta: "A atmosfera tensa da cidade torna-se ainda mais inútil quando não há ninguém que a pise."
A constante "repulsa pelo movimento" pauta os dias deste homem que já não espera nada da vida.  Movimento é andar para a frente, é avançar e esquecer, mas Leto não quer esquecer. Ele é o homem gaveta, um mistério que encerra palavras que ninguém entende, lamentos que os outros não ouvem.

"O que cada um faz com o vento serve para fugir à escuridão, (...). Descobri depois que acontece o mesmo com as palavras."

Palavras essas, ditas em surdina que ainda o surpreendem com verdades que lhe mostram a sua lucidez com que olha ao mundo: "desconhecia haver vitória no falhanço."

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Neste "As aves não têm céu" faz-se um retrato duro e cru de um homem despedaçado que “não espera nada das pessoas, senão presença, ruído e desprezo” e que vive num estado de espírito de permanente desilusão com a vida: “Se eu der um tiro na cabeça será que ouço o barulho da arma a cair no chão?”

São nestas dúvidas que vai marinando a vida sem préstimo de Leto que num “dia de céu balsâmico” perdeu a filha e culpa-se como talvez todos os pais se culpam da morte de um filho. É esmiuçando no sofrimento, no luto e no remoer de episódios do passado que a vida deste homem surge tão fragmentada como a sua mente. Só a culpa não é fragmentada, essa sim está compacta, inteira, insuportável!

Há só um detalhe que para mim fez mossa, foi a desconexão da narrativa, compreendo-a e acho-a uma metáfora brilhante para o estado de espírito do personagem, no entanto, não é a estrutura que mais aprecie para seguir numa leitura, ainda assim acho um resultado extremamente positivo.

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