Li «Dor» de Zeruya Shalev depois de ter lido «O desassossego da noite» de Marieke Lucas Rijneveld e é brilhante ver como os livros se completam e as leituras se cruzam, quase dando respostas de umas para as outras.
“Há dois tipos de pessoas, os que agarram e os que largam. Pertenço à última categoria. Só por meio de tralha que coleciono consigo agarrar recordações ou pessoas, assim consigo guardá-las em segurança nos bolsos do casaco.”
«O desassossego da noite» de Marieke Lucas Rijneveld
Na intertextualidade entre livros, Cas tem os bolsos cheios de coisas que queria perto de si, enquanto Íris "está tão habituada a estender a mão para o lugar vazio, os seus dedos perderam-se nas profundezas do bolso vazio da sua vida (...)"
Íris, 45 anos,é mãe, esposa, professora, directora, vítima e
lutadora e é também uma mulher vazia e despedaçada em diversos sentidos. É uma mulher carregada de dor que questiona a vida que leva. Relutante, vê cada vez mais um
esforço injustificado em todos os esforços e sacrifícios que faz e fica ainda
mais pesarosa perante uma hipótese remota, uma confissão que a mãe lhe faz e que
lhe mostra “(…) cortando o ramo sobre o qual construir com esforço o seu
ninho frágil.” que o rumo podia ter sido outro, há mais de trinta anos.
Com esforço ou sem ele, não são todos os ninhos frágeis? Ou
fragilizam-se perante o reabrir de feridas do passado que se julgavam
totalmente suturadas? Quantas camadas de dor esconde o passado?
“Miki: «eu gosto de jogar contra mim próprio», uma frase que
retrospectivamente ganha um significado adicional (...) porque viver com uma
mulher que quase morreu de amor é um jogo contra si próprio e não traz nada de
bom."
Quando nos enganamos a nós mesmos, quem é joga contra si
próprio? Tapar um buraco exige sempre que se abra outro?
“(...) não ouve as palavras dela, e talvez seja melhor
assim, porque ultimamente temos um problema com as palavras, pensa ela,
utilizamo-las para esconder em vez de revelar. Traímos com as palavras, e
talvez isso seja pior do que trair o outro, traímos com as palavras e elas
castigam-nos."
Em «Dor», Zeruya Shalev explora vários processos de luto, de
dor e das dinâmicas de uma vida familiar que parece a cada dia que passa mais frágil e vazia e que questiona constantemente o passado, o deles, um a um
individualmente, mas também o de um país, que em todas as partes em que se
divide, fracciona opiniões e uma família. E a dor tal como o passado é feita de
camadas, mas a pergunta principal talvez seja: e numa mulher, quantas dores
cabem?
"O tom de voz é hostil e frio, custa menos zangar-se
com ela do que preocupar-se com a filha, que estupidez é esperar que quando um
homem nos desilude outro nos surpreenda pela positiva, que estupidez é
esperar."
Esperar é uma forma de luto? Quanta dor exige a espera?
«Dor» está escrito com um ímpeto e uma fluidez ímpares. Uma
catarse íntima despertada pela dor, seja ela a do acidente, a do abandono ou a
do adultério. Uma catarse intensa que questiona a vida a dois e a vida que se
constrói num país dilacerado por violência. Ela pode ter construído um lar
em Israel, mas o próprio país cria em cada família uma carapaça, escondendo
a angústia e a inquietação: “(…) pois a dimensão da queda apenas revela a da
angústia (...)
Será que Eytan (o amor do passado) pode ser também ele uma queda, uma queda
fatal que danificará a tartaruga há tantos entregue a outra carapaça? 😉
“(…) e ao lado do seu corpo grande tem uma sensação profunda
de casa, como se ela fosse uma tartaruga e ele a sua carapaça, sente-se cada
vez mais próxima dele que por pouco não lhe conta que o tal medico de barba
branca devia ser o seu amor de juventude (…)”
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