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segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

«O AVESSO DA PELE» de Jeferson Tenório :: Opinião

 

"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. (…) E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até ao fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. (…) É com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar (…)"

«O avesso da pele» de Jeferson Tenório arranca desta forma e diz muito sobre a incompreensão e a dificuldade de relacionamento entre duas pessoas. Uma realidade áspera, antes e agora, a de um filho que procura recuperar e entender as memórias e ausência, uma ausência feita de objetos, feita caos que comove.

A ausência de um pai, que pode ao mesmo tempo, ser um legado e um abismo. Um abismo do qual se abeira qualquer filho quando, entre pai e mãe começa mal. E daí ser tão pertinente: descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar.

“(…) o que começa mal termina mal. Eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com os seus cacos. Cada um buscando uma escora. O amor como muleta. Naquele momento, a vida já havia tirado tanto, que vocês achavam injusto que o amor não pudesse servir como amparo. Acontece que, em vez de buscarem algo que pudesse reconstruíram os afetos, resolveram se cortar o que restou."

Pedro, o narrador protagonista, perde-se na geografia vasta dos afectos, a analisar o interior do labirinto que foi a vida familiar dos pais, e até a sua, colocando na equação questões cruciais que se cruzavam com o amor, que o delimitavam e definiram: a cor da pele! A pele na sociedade, a pele em todos os relacionamentos. A pele dentro da cabeça de cada um que é sempre mais do que pele.

Ou, e mais importante ainda, a conturbada relação entre pele e o avesso da pele!

Mesmo com o ocutá atrás da porta, a pobreza, o preconceito e a injustiça, espreitavam a cada esquina e aumentavam a ferida funda que ameaçava rasgar o avesso, mas Pedro tenta, neste relato, recuperar os afectos e entender todo o tipo de herança que lhe ficou. E o que fazer com ela.

“Li recentemente que as relações afetivas são formadas por duas categorias: dos egoístas e dos doadores. Você era um doador nato. Minha mãe era uma egoísta nata. (…) não a condeno por isso. (…) A infância nos fornece certas mágoas e é com elas que lutamos.”

 *

Jeferson Tenório explora os afectos, mas explora ainda mais o viver confinado ao meio-fio da vida, porque a sociedade te coloca nessa mesma berma, nesse lado marginal da vida e como combater para sair desse lado, onde se é posto de parte. E o romance explora diversas formas de viver à parte, por se ser lá colocado e por tanto se lutar pela integração, que a pessoa acaba criando uma margem só sua, um lado de dentro só seu… uma forma de alimentar uma solidão inacessível aos outros, talvez vencida, só pelos livros* e pelos afectos (quando possíveis).

"Vocês só sabiam lidar com os afectos na precariedade. Vocês não eram equilibrados. Eram equilibristas. A corda bamba como terreno dos afectos"

É nessa corda bamba que, com um pé bem atrás do outro – passos curtos mas nem sempre firmes - se avança, embora a dor e o trauma desenhem os contornos destas vidas, com que Tenório compõe um livro belíssimo. Duro, mas belíssimo.

 

* capítulo 7 de «O Jogo do Mundo» de Córtazar que eu fui descobrir graças aos livros aqui referidos

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