Numa França vista do 6º andar de um prédio pobre, Momo, um
rapaz que “não foi datado” vive aos cuidados de Madame Rosa, ex-prostituta e
ex-judia, (os próprios papéis provam essas “não-existências”) que o recebeu por
ele ser uma “criança ilegal”, “um filho de puta”. Mas os anos estão a passar e
os quilos da Madame a aumentar à mesma velocidade que o seu corpo se deteriora
com eventos em que a cabeça ganha pernas e vai passear.
As histórias destes Miseráveis,
porque Victor Hugo e a sua capacidade de descrever a França e a miséria são uma
inspiração e aspiração de Momo (e do Senhor Hamil) que, quando crescer, quer
escrever assim a histórias dos seus miseráveis e Roman Gary consegue
isso mesmo em «Uma
vida à sua frente» na voz desta criança de dez anos, Momo, que com a sua inocência,
própria da idade, mas com a perspicácia (e alguma confusão, já que Momo ao
início era muito novo para ir à escola e de repente já tinha idade a mais) de
quem teve de se desenvencilhar sozinho… até para ter uma mesada!
“Quando os vales deixavam de vir para um de nós, a Madame
Rosa não punha o culpado na rua. Era o caso do pequeno Banania, o pai dele era
desconhecido, logo não o podíamos censurar por nada; (…) a Madame Rosa ralhava
com o Banania mas ele estava a borrifar-se, porque só tinha três anos e
sorrisos. Acho que a Madame Rosa teria dado o Banania à Assistência, mas não o
seu sorriso, e como não se podia separar um do outro, via-se obrigada a ficar
com os dois.”
Momo narra a sobrevivência que por ali se vive quase sem maldade,
embora exista dinheiros e leis à mistura, coisas que Momo pouco percebe, entre
muitas outras, mas de solidão, desamparo e ausências Momo percebe.
“Não faço ideia do que me deu, mas havia anos que não tinha
mãe nem pai, nem mesmo bicicleta (…). Fiquei todo tocado e possuído pela
violência, nem dá para acreditar. Vinha de dentro de mim, e é ali que é pior.
Quando vem de fora com pontapés no cu, podemos sempre fugir. Mas de dentro, não
é possível. Quando me apanha, quero ir-me embora e não voltar mais a lado
nenhum. É como se estivesse alguém a morar dentro de mim. Começo a gritar,
atiro-me para o chão, bato com a cabeça para sair, mas não é possível, não tem
pernas, nunca temos pernas dentro de nós. Faz-me bem falar disto, aliás, é como
se estivesse a sair um pouco. Estão a perceber?”
E o leitor vai percebendo!
Vai aceitando a dureza do relato enquanto desanuvia pelo
humor e ironia com que é descrita e é aí que reside toda a peculiaridade da
escrita de Gary; é na força do humor, pelo traço inocente da voz de Momo que a
fronteira que segrega estas pessoas, a invisibilidade e o preconceito em que
vivem, é denunciada.
Ainda assim, existem excepções, e ainda bem!
“Eu ia muitas vezes sentar-me na sala de espera do Doutor
Katz, já que a Madame Rosa repetia que era um homem que fazia o bem, mas não
senti nada. Talvez por não ter ficado tempo suficiente. Sei que há gente que
faz o bem no mundo, mas não fazem isso a toda a hora e é preciso calhar no
momento certo. (…) A Madame Rosa dizia que o Doutor Katz era a medicina geral,
e é verdade que se via de tudo ali, judeus, claro, norte-africanos, para não
dizer árabes, negros (…)”
«Uma vida à sua frente» denuncia e reflecte sobre temas que
ainda hoje são discutidos, seja pela controvérsia, seja pela herança tóxica dos
conflitos armados, do colonialismo ou outros que ainda têm muito de tabu, como
é o caso da eutanásia.
“Não queria ouvir falar do hospital onde nos fazem morrer até ao fim, em vez de nos darem uma injecção. Dizia que, em França, estão contra a morte serena e que nos obrigam a viver enquanto ainda formos capazes de sofrer. A Madame Rosa tinha um pavor à tortura e dizia sempre que, quando tivesse que chegasse, far-se-ia abortar. (...) Vi logo que ela se tinha deteriorado mais na minha ausência e sobretudo em cima, na cabeça, onde ela estava pior do que nos outros sítios. (…) estava tão danificada que até os seus cabelos tinham parado de cair porque o mecanismo que os fazia cair tinha-se também deteriorado.”
É impossível ao leitor não sorrir, por vezes até rir à
gargalhada com os termos inocentes de Momo, num humor afiado, quase cáustico,
que dão toda uma outra dimensão ao que nos narra e a leveza com que revela
preocupação pelo sentido da vida: “se quiserem a minha opinião, o tempo, é para
os lados dos ladrões que temos de o ir procurar.”
Procurar o tempo junto dos ladrões, abortar alguém na velhice, “perder-se no seu interior” ou “ter uma cabeça que passeia” quase que retira seriedade aos assuntos, mas acrescenta uma sensibilidade enorme a uma criança que efectivamente é responsável por uma mulher idosa com demência e a quem, se pudesse, daria uma morte digna e como ela pretendia, enquanto ainda podia escolher.
“- Vão obrigar-me a viver, Momo. É o que fazem nos hospitais, têm leis para isso. Não quero viver mais do que o necessário. Há um limite, até para os judeus. (…) Não quero viver só porque a medicina o exige. (…)Prometes?
- Khaïrem.
Quer dizer «juro» (…)
Eu teria prometido qualquer coisa à Madame Rosa para fazê-la feliz, porque mesmo quando se é muito velho a felicidade ainda pode ser útil (…).”
A felicidade mesmo que a conta
gotas é sempre útil e dá-la, às vezes até sem a ter, é um acto de amor. E é
preciso amar mesmo que seja num «buraco judeu». E Gary conseguiu um livro
terno, não pelo que conta, mas pela forma como o faz, com um humor redentor.
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