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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

«A Ignorância» de Milan Kundera :: Opinião


Lido pela primeira vez em 2010, «A Ignorância» é um pequeno livro cheio de grandes questões como é hábito conterem os livros de Milan Kundera. Nessa primeira leitura foquei-me na nostalgia, memória e regresso e desta não foi muito muito diferente, embora seja curioso ver a diferença entre os trechos selecionados. 

Um homem, Josef, vê-se a braços com um regresso e as indagações que daí advêm, quando se confronta com a pátria e uma mulher. Irene, da qual não se lembra, mas com o que ele mais se confronta é com a memória e a certeza de que o regresso é a reconciliação com a finitude da vida, caso contrário, seria alimentar a eterna fuga, «habitar o infinito», que foi precisamente do que fugiu quando deflagrou a guerra e o comunismo. 

E a dúvida instala-se! Atormenta-o. Aliás, atormenta-os a ambos, numa fraternidade nocturna, cujo sonho comum expõe os mesmos medos.

“Também a memória não é compreensível à falta de uma abordagem matemática. O dado fundamental é a relação numérica entre o tempo da vida vivida e o tempo da vida armazenada na memória. Nunca se tentou calcular esta relação e não existe de resto qualquer meio técnico de o fazer; no entanto, sem correr grande risco de me enganar, posso supor que a memória não guarda mais que um milionésimo, um bilionésimo, em suma uma parcela perfeitamente ínfima da vida vivida. Também isto faz parte da essência do homem. […] 

Nunca acabaremos de criticar os que de forma o passado, ou reescrevem, ou falsificam, que dilatam a importância de um acontecimento, e calam a de outro (…) À margem da nossa vontade e dos nossos interesses. Nada se compreenderá da vida humana enquanto se persistir em escamotear a primeira de todas as evidências: a realidade, tal como existia quando existia, já não existe; a sua restituição é impossível.”

 Atormenta-os também, a necessidade tão grande de catalogar e medir a dor e sofrimento, entre quem partiu e quem ficou, explorando uma ideia de hierarquia da dor, juntamente com os sentimentos de traição e amputação, dividindo novamente quem foi e quem resistiu, restituindo-se o reconhecimento como vítimas. Restituindo-se direitos. 

“Primeiro, com o desinteresse total pelo que ela viveu no estrangeiro, amputaram na de vinte anos de vida. Agora, com este interrogatório, tentam voltar a coser o seu passado antigo e a sua vida presente. Como se a amputassem do antebraço e lhe fixassem a mão diretamente no cotovelo, como se a amputassem das pernas pelo joelho e lhe prendessem aos joelhos os pés ponto siderada por esta imagem, não é capaz de responder nada às perguntas delas (…)”

Questionando a deformação da memória, essa «memória que o detestava, que não fazia outra coisa que não fosse caluniá-lo; esforçava-se por isso por não acreditar nela», por manter a sua «insuficiência de nostalgia» e «à medida que trechos da sua vida caem no esquecimento, o homem desembaraça-se daquilo de que não gosta e sente-se mais leve, mais livre», ainda assim, para se apaixonar, é preciso estar presente e no presente. E a paixão é a exaltação do presente, da vontade de viver, mas como poderia conhecer o sentido do presente quem não conhece o futuro?


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