Escatológico ou não, seja pela quantidade de vezes que relata os seus episódios fecais, seja pelas preocupações que a se abeirou sobre o fim do mundo e ideias de pós-fim de mundo, por motivos de doença e ambiente pandémico, o que e certo é que «O Quarto do bebé» de Anabela Mota Ribeiro é um registo diarístico peculiar, sem friso cronológico definido e que tanto disserta sobre a banalidade e a mesmice do dia-a-dia como tece comentários e preocupações de teor mais intelectual, deixando o leitor sem saber muito bem o que vai encontrar ao virar de cada página. Uma coisa é certa. O medo.
"Escrever é fazer pão. É dar uma forma ao medo, torná-lo comestível, ser capa de o cuspir."
E em confinamento, pandemia, doença e incerteza, o medo foi companheiro de muitas horas, nas horas de todos nós. "A raiz deste medo é diferente da raiz do medo do que é incognoscível. Ainda que seja sempre medo. Um solo diferente que dá pedras semelhantes. Lá no fundo, na ramificação, talvez deem as mãos." Tal como as pedras, o medo assume diversas formas, sempre exigentes. Duras. Escrever foi uma forma de combater o medo. Escrever e limpar. Limpar e escrever. Reescrever. Limpar. Mas limpar o quê? O medo e o passado?
A descrição dos factos destes dias, um dia, vai constituir um dialeto do isolamento. Uma linguagem que só pertence a este contexto, que só nós, que vivemos o medo de morrer e o horror da desesperança, dominamos com proficiência."
Talvez esta possa ser uma resposta ou um roteiro de leitura. Um diário-prova dos factos. Uma limpeza do medo e do passado das que deixa rasto, embora limpo, arrumado, datado e acedido apenas pelo acto de ler. Contraditório. Como tudo no ser humano, especialmente quando o medo estica as ramificações a um futuro (ou passado) longínquo, como a solidão e a orfandade de ser só cinzas, corpo sem descendência, camada de pó que ninguém vá visitar. E oscila entre a não-maternidade própria, real e a orfandade nascida no abuso que foi a colonização, dando uma perspectiva que não se ouve muitas vezes.
“Quando passaram 40 anos sobre o 25 de Abril, dei-me conta
de que o meu pai não estava quando comecei a andar e a falar. Tinha meses
quando ele foi para a tropa. Essa era a condição de milhares de crianças. A
compreensão dessa ausência, do trauma, da orfandade é uma coisa que só agora
começa a ser escalpelizada nos estudos sobre o colonialismo. Escalpelizada é mesmo
aquilo que quero dize. Abriu-se uma porta para a cabeça, fez-se um lenho, alguns
começaram a entrar, muito começou a sair.”
São variadas e entrecortadas, as memórias entre passado e presente, porque o presente quando começa a ser escrito já é uma memória, diz-nos a certa parte, como também nos diz que luta e esbraceja, é borboleta. E de bater de asas hesitante, hesitamos muitas vezes em continuar, questionando o sentido do que lemos e entretanto a autora responde-nos: "Ainda não estamos nessa fase. Não procuramos capta um sentido. Procuramos sobreviver." E podemos extrapolar as suas palavras sobre a pandemia para o que sentimos com o seu livro, que nos vamos desviando de certas palavras que caem como pedras. Pancada seca, queda abrupta, umas conseguimos identificar de que falésia caem, outras não.
E chegamos ao fim acreditando que o sentido de tudo isto provêm de uma tristeza imensa que acompanha futuros que ficaram por cumprir, que morreram no cansaço e na doença. Uma tristeza imensa perante a dor e o medo da solidão. Simultaneamente há uma enorme capacidade e inteligência de pensar tudo isto de forma detalhada e cirúrgica, ficcionando um registo com arestas verídicas.
"A minha vida são esforços de emancipação, gestos de recusa, uma dor que me autoinfligia, a culpa de me ter insubordinado. E um desamparo absoluto. A certeza de estar sozinha. Não há uma clareira última para onde possa fugir, onde me sinta embalada. Pegada ao colo. O cancro deixou um imenso rasto. Eu não sabia que a extração do tumor eram mais simples. É única coisa simples."
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