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sábado, 24 de fevereiro de 2024

«O assassino cego» de Margaret Atwood - Opinião

“A única forma de escrever a verdade é partir do princípio que aquilo que se escreve nunca vai ser lido por ninguém. Nem por outra pessoa, nem mesmo nós próprios, mais tarde. De outra maneira começamos a desculpar-nos a nós próprios.”

Esta é a premissa de «O Assassino Cego» onde Iris Chase escreve para se confessar, mas não pede perdão. Narrada ao ritmo da sua velhice: “cada vez mais me sinto como uma carta – depositada aqui, recolhida ali. Mas uma carta que não é dirigida a ninguém.” Ou é, nem que seja a si mesma, enquanto se ouve a recontar, detalhadamente os acontecimentos. É uma caça às recordações.

“Um pássaro vivo não é a mesma coisa que os seus ossos etiquetados”

Nas primeiras cinquenta páginas temos elementos-chave para toda esta narrativa complexa e descritiva. 

As mulheres sem língua, inchadas por aquilo que as obrigam a calar, é apanágio da época. Calar as mulheres, casá-las para salvar a honra e as fortunas depenadas das famílias, entregá-las aos conventos ou à religião… tudo se justificava pelo papel submisso e secundário da mulher numa sociedade onde “havia muitos deuses. Os deuses dão sempre jeito, justificam quase tudo…” ainda assim, a narradora-protagonista, Iris Chase diz que à luz quente de uma chama, quando confrontados com a verdade não somos mais que ossos e “Sabe Deus que ossos roí durante o sono.”

Ao longo de quase um século de história, há muito osso para roer e outros a quem só sobram mesmo os ossos. Existem preocupações de género e de classe, laborais, sociais e políticas e sobre tantos traços de época, tecidos numa visão lúcida, mas angulosa, aparentemente o único dado às mulheres, o da observação. E quem é obrigado a isolar-se e a recatar-se, comportando-se como uma ilha, pode ganhar a força bruta da Natureza. Dissimulada e misteriosa. Tentacular. Superior!

É essa história tentacular, misteriosa, por vezes bruta, por vezes dissimulada, aparentemente conformada e justificada que viaja em tantos tempos cronológicos que nos permitirá descobrir que as irmãs Chase têm os seus lixos como qualquer outra pessoa: “Não a invejo: todas as vidas são um depósito de lixo mesmo enquanto estão a ser vividas, e ainda mais depois.” E ainda: “As pessoas de carne e osso nunca conseguem estar à altura da sombra brilhante lançada pela sua ausência.”

E fica quase tudo dito.

Ou não! Pois nem todas as sombras são brilhantes ou delas se deseja o regresso.

Para contar tudo isto, há um livro dentro de um livro, quase um século de história convulsa e ainda um mundo fantasiado criado nos momentos em que dois seres recriam um universo só deles. Só para eles. Tudo numa escrita que não esconde brilhantismo e um compromisso com a denúncia, mas também com uma enorme compreensão e empatia pelo que de mais humano existe em todos nós: a dúvida, a comparação com o outro, o medo, o desespero, a velhice, mas obviamente também o amor.

“Interrogo-me sobre o que será preferível – andarmos a vida inteira com os nossos segredos até rebentarmos com a pressão, ou que eles nos sejam sugados, cada parágrafo, cada frase, cada palavra, até no fim ficarmos vazios de tudo o que foi em tempos tão preciosos (…) tão próximo de nós como a nossa própria pele – (…) e ter que passar o resto dos nossos dias como um saco vazio abanando ao vento, um saco vazio com uma etiqueta fluorescente para que toda a gente saiba que tipo de segredos costumávamos esconder.”

E quando aos segredos se junta o dinheiro: “o dinheiro era-me imputado, da mesma forma que os crimes são imputados àqueles que simplesmente estão presentes no local.” E no local sempre esteve Iris Chase, que crimes lhe podem ser imputados?

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