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segunda-feira, 17 de junho de 2024

"O segredo dos teus olhos" de Eduardo Sacheri :: Opinião

“O segredo dos seus olhos”, aclamado primeiro romance de Eduardo Sacheri, foi adaptado ao cinema por Juan José Campanella, arrecadando diversos Prémios, entre eles, o Óscar de Melhor Filme Internacional (2010) e um Goya e ainda em 2016 foi inserido na lista dos 100 Melhores Filmes do Século XXI pela BBC. As ovações não são em vão, tanto livro como filme são dois objectos de culto distintos e amplamente intensos.

“Muitas vezes me surpreendeu notar no meu espírito certa alegria culpada perante os horrores alheios, como se a circunstância de sucederem coisas pavorosas aos outros fosse um modo de afastar da minha vida tais tragédias. Uma espécie de salvo-conduto.”

Benjamín Chaparro era o dono desse salvo-conduto, no entanto, um homicídio de uma bela mulher e o coração dilacerado do marido porão chaparro numa luta obstinada por descobrir o culpado, como se esse crime lhe desse “a oportunidade de ver reflectidos, nessa vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” 


E Chaparro tem alguns medos, algumas ânsias caladas e o tédio de anos de serviço público rodeado de burocracias e pessoas menos entusiasmantes. Ainda assim essa sua vida, erguida numa torre de ironia mordaz, onde escolheu entrincheirar-se e onde lhe sobram farpas sempre prontas para disparar, existe Irene e em Irene residem muitos dos segredos mais íntimos e solitários de Benjamín. 

“(…) esse silêncio em que estão a interrogar-se com um sorriso mudo, é porque nada os retêm ali excepto isso, excepto estarem simplesmente um perante o outro, deixando passar o tempo sem outro objectivo que não terem-se por perto, e é essa a beleza de estarem em silêncio a interrogar-se. (…) bastaria umas meias palavras, um gesto mundano a dar-lhe a entender o seu interesse, e Irene que imagine o resto. Porque não consegue fazer isso? Porque não. Por isso mesmo. Porque já são tantos os anos de silêncio que Chaparro prefere ser enterrado com a verdade sobre os ombros do que soltar atabalhoadamente uma versão edulcorada, dietética, digerível do que sente por ela. Não pode!”

E chamar-lhe, ora Chaparro ora Benjamín não é inocente, pois dentro dele vivem dois homens distintos que perante o crime de violação e assassinato de Liliana Colotto de Morales e a perseguição pelo culpado, se misturam e lhe determinam o curso da vida. Tanto, que mais de 30 anos volvidos e já na reforma, Benjamín Chaparro continua a pensar em Liliana e no marido Ricardo Morales. É essa saga interior e visceral destes dois homens que alimentam o enredo deste livro. E Irene, sempre Irene!

Por livro entenda-se o livro que Chaparro está a escrever, como entretém na sua vida de reformado. E Irene será sempre um capítulo inacabado, quase uma novela, cujo a cronologia se confunde com tudo o resto. 

“Benjamín Chaparro martela diversas vezes a tecla de espaços da máquina de escrever para libertar a folha. Pega nela pelas beiras, apenas com as pontas dos dedos, e apoia-a como se fosse uma granada sem cavilha sobre as outras dezasseis ou dezassete que também se salvaram de voar amachucadas para o cesto. Enternece-o ligeiramente reparar que as folhas escritas formam já uma espessura mínima, um certo corpo.”

Um certo corpo também Benjamín formou com Sandoval, colega e comparsa com um papel muito interessante e que revela um outro lado do livro, o do desespero e opressão num país cheio de feridas deixadas por uma ditadura militar cruel, oscilando entre a época em que direitos humanos e de cidadania foram suprimidos e já depois com a devida herança nefasta que um regime deixa na história de um povo.

“Desconhecia então todas as dificuldades que nesse dia semeara no meu próprio destino, e que mais tarde ou mais cedo haveria de colher. Julgo que ninguém seja capaz de ler, na borra do presente, os sinais das suas futuras tragédias.”

Ainda assim, Benjamín não adivinha as futuras tragédias que o esperam, revelações que alterarão as suas próprias definições de espera, culpa, silêncio e claro, segredos.

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