"A ponte é uma escada entre duas margens, não a margem da esquerda e a margem da direita, mas a margem de cima e a margem que fica em baixo (...). Uma escada tem dois limiares, define duas portas, a do primeiro e a do último passo, não importa se a sobes, se a desces, porque haverá sempre um primeiro e um último passo. Cada degrau implica um esforço, uma tensão, um esticar de corda no arco do corpo, que se curva em obediência para onde vai. Em alguns desgraçados seres, também se lhes dobra o arco do espírito.(...)"
É entre estas margens e neste sobe e desce que acompanhamos, inicialmente, Isaac Comondo e Abraham-Solomom de Comondo, nas escadas de Istambul que são metáfora para os primeiros e os últimos passos que aqui se descrevem para esta família de judeus, ao longo de quase cem anos.
Os esforços e a dedicação para a educação, a liberdade e o conhecimento são as preocupações dos patriarcas, as escolas que respeitavam todos os credos foram um marco dos Comondo, ainda em tempos de Império Otomano. E mais tarde, já em França, numa sociedade mais polida e artística, também pela mão de Abraham-Béhor de Comondo e de seu filho, também ele Isaac, são reconhecidos mecenas.
Embora sempre pouco compreendidos e acusados de negócios duvidosos que lhes atribuíam fortunas incalculáveis, os Comondos ou os «Rothschild do Oriente» são aqui descritos sempre com intenções filantrópicas, aliás, a devoção ao próximo e em benefício da humanidade eram a sua tsedaka.
"- Tsedaka? - perguntei.
- Um sentido da vida como uma missão, um dever para com outros, o Outro, acima de tudo."
"Nesta casa podes contar com o que precisares. Aprendi uma coisa de meu pai que o teu já te deve ter ensinado, pelo que vejo nos teus olhos humildes: a franqueza de dizer o que tem de ser dito e de pedir ajuda quando dela verdadeiramente se precisa."
É essencialmente assim que a conversa e a história se vai tecendo entre o narrador e Mehte, um turco que Tiago conhece numa das suas viagens e com quem prossegue nesta escada de Comondo, entre gerações e feitos de uma família que o Holocausto findou.
"A França, gritava o arauto da destruição, iria ter a sua última queda antes de se levantar um novo mundo, governado pelos mais aptos, não uma raça qualquer, mas a raça dos homens eleitos, uma nobreza onde não cabia o palhaço Auguste, nem Isaac, nem qualquer semita usurpador."
É ainda de salientar que este livro me permitiu uma estreia na escrita de Tiago Salazar, também ele em estreante no romance, se bem que as viagens estão presentes e muito bem, diria eu. Como também achei muito conquistadora a beleza da sua escrita, de descrições muito bem conseguidas, de diálogos bem estruturados e de um enredo bem encadeado.
"O Sena iria fazê-la esquecer o Bósforo, dissera-lhe o marido numa carta; mas como podia aquele fiozinho de rio translúcido e lamacento, que vira pelo caminho em valsa lenta da janela do coche, superar as memórias de um estreito corpulento, cuja a força se impunha como um mar de possantes vagas? As ruas e avenidas de Paris desenhadas a régua e esquadro não tinham a balbúrdia ululante dos bairros de Istambul, onde tudo ameaçava ruir ou consumir-se na histeria do desacato."
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