"Os seus sonhos de infância tinham sido bonitos, alimentara tantas esperanças, não queria acreditar que se transformara num zé-ninguém, embora, por outro lado, quem mais além de um zé ninguém passaria os melhores anos da sua vida a insultar uma fotocopiadora?"
É com Morse, numa reflexão de meia idade, no conto «As Cataratas» que podemos abrir as hostes para estes seis contos de Saunders, Man Booker Prize deste ano, que explora de forma coloquial, satírica, ácida e absurda, vidas nos seus mais variados estados do quotidiano. Se o aborrecido das crises existenciais é por vezes retratado com questões profundas, aqui o dilema chega de forma inesperada e divertida.
O mesmo se passa nos restantes contos. Há em todos um traço de ridículo que encaminha o leitor numa curiosidade que se poderia chamar de mórbida, pois em alguns parece que o fim pode estar no virar da próxima página. E no entanto, as descrições loucas continuam e o leitor flutua entre uma dose de realidade duvidosa e um humor negro e alucinogénio.
"Cedo na manhã seguinte estava sentado na banheira, a preparar-se para o encontro. Ali estava a sua salsicha flutuante, como se fosse um animal marinho, e ali os seus cotos encostados aos azulejos verdes. Mexeu-os nervosamente de um lado para o outro, como Fred Astaire a dançar numa parede, e arrastou uma toalhinha pela a´gua, segurando-a por um canto, de forma que parecia outro animal marinho, uma raia, uma raia bordada com monograma que atravessava o território que era a sua barriga e atacava o animal marinho que era a sua salsicha."
Imaginar um homem adulto, cheio de conquistas falhadas, em constante luta com a mãe, com quem ainda mora, e um emprego de barbeiro onde a maior felicidade é poder colocar-se à porta do salão, a ver as mulheres que passam, cobiçando-as com piropos foleiros, como se elas ali passassem para um desfile privado, sendo ele o espectador principal; faz lembrar o divertido romance «Uma conspiração de estúpidos» de John Kennedy Toole.
Os contos de Saunders são palco para todos os males e vícios actuais, as crises conjugais, as rotinas embrutecedoras, a necessidade da linguagem de auto-ajuda, os estrangeirismos para nos parecermos mais cultos e "in", a psicologia de trazer por casa como solução motivacional a crueldade do fim da infância/adolescência, os vizinhos, os colegas de trabalho, a decrepitude geral e generalizada.
"- Estou perdido! - gritou o tu. - Ando às voltas numa espécie de deserto!
- Ó Tu, chega aqui! - gritou uma rapariga do outro lado do palco, cuja tabuleta dizia «Paz Interior». - Aposto que andaste a vida inteira à minha procura.!
- Bolas, se andei! - disse Tu. - Vou já!
Mas logo a seguir apareceram mais actores no palco, com tabuletas a dizer «Choramingão». «Narcisista», «Culpa os outros pelo facto de seres gordo» e assim sucessivamente, que rodearam Tu e começaram a empurrá-lo e a dar-lhe carolos.
- Não acredito que gostas mais da Paz Interior do que de mim, ó Tu! - disse o inseguro. - Isso deixa-me mesmo magoado.
- Fracamente, nunca me senti tão desiludido na minha vida - disse o desiludido.
- Ai, meu Deus, toda esta confusão está a provocar-me um ataque de ansiedade - disse o Demasiado tenso para funcionar normalmente.
- Estou à espera, Tu - disse a Paz Interior. - Queres vir ter comigo ou não?
- Quero, mas sinto-me encurralado! - gritou Tu."
É muito bem trabalhado neste conto, «Winky» a luta interna entre desejos, necessidades, vontade própria e o tão conhecido "deixar andar", um tom permissivo que abunda e que tão associado está ao "sobreviver" e ao "tentar" Acho que é exactamente isso que estes contos pretendem relatar. Temos uma sociedade que está ocupada em tentar sobreviver, gerindo o melhor que consegue entre sonhos, ilusões e realidade.
Realidades como a de bairro social, em «Carvalho do Mar» ou de reallity shows aí descritos e a dura realidade de se conviver com o próprio corpo e o crescimento (FIRPO) que tantas vezes se faz sem suporte familiar, havendo na mesma, a família, como último reduto quando tudo o resto falha.
"Os comentadores de cabine por cima do salgueiro começaram a chorar quando ele se sentou ao colo da Mamã e pediu desculpa por ter sido um filho tão FIRPO e a mamã disse: Obrigada, obrigada, Cody, por finalmente admitires, isso torna tudo melhor (...)"
Nunca chegamos a saber o que é FIRPO, tal como vamos avançando nas muitas páginas de «Pastoralia» apenas desconfiando de que aquilo pode ser um trabalho, um ambiente laboral. Estranhamos e depois reconhecemos detalhes do real, do diário. É realmente uma mistura muito peculiar a que Saunders consegue, um lado humano descrito por imagens selvagens e surreais.
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“Quando me afasto dos universos alternativos e tento ser realista à la Hemingway ou Raymond Carver, parece que estou a deixar qualquer coisa na mesa; há sempre qualquer coisa em que acredito que não teve hipótese. Gosto de histórias com alguma selvajaria. Para mim, beleza e selvajaria estão próximas, e não consigo atingir isso quando tento ir por um caminho realista. A história perde fulgor. Quero que as minhas histórias tenham um certo grau de energia. Há uma citação bonita da Flannery O’Connor: ‘Podemos escolher sobre o que escrever, mas não podemos escolher o que fazer viver’. Para mim, respeitar a arte é respeitar a força das minhas histórias, saber que há coisas que não posso decidir.” Saunders numa entrevista no Público.
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