«UMA HISTÓRIA DE PÁSSAROS»
Neste conto, Afonso Reis Cabral, cruza a história da morte da avó Carolina com uma memória de pássaros soltos. Entre resquícios dessas memórias, o narrador relembra a firmeza e a personalidade da avó que lhe escapa agora por entre cheiros, afazeres e miudezas a que a morte obriga.
"Pareceu-me impossível alguém que ocupou tanto a minha vida caber dentro da cama com espaço de sobra, mas é evidente que a avó Carolina encolheu antes de morrer."
Com cento e cinco anos, Carolina de Lucena e Almeida de Queiroz "era pois uma mulher insuportável, coerente com a lógica de quem pariu com medo da solidão, e de quem detinha a filha, e mais tarde o neto, como veículo de bem-estar. A sua personalidade sustinha-se com a argamassa do dinheiro; apenas a bom preço certas pessoas a aturavam."
Forjada numa firmeza e numa consistência que parecia assustar, de quem até os pássaros, bico-de-lacre, eram precisos esconder: "(...) para testemunhar a azáfama de patas que arranhavam, bicos que se escondiam nas asas e disputas repentinas. «Não podes ao menos escondê-los no quinta?» Eu queria admirá-los de perto (...)
Não me surpreendeu que ao cair da noite a gaiola tivesse desaparecido. (...)
Tardava quando voltei a casa, com o peito vazio de mil aves, e encontrei a avó à espera (...)"
A aura da avó Carolina tinha uma densidade que constrangia, especialmente a filha, que se espartilhava em afazeres e desculpas para com a mãe, mas também Lídia que lhe tinha uma dedicação extrema e um zelo desmesurado já quando a velha senhora só assumia a postura de um animal transfigurado ou um pássaro ferido.
Talvez possamos ver na debandada dos pássaros, ainda pequenos, a metáfora para as amarras que se cortam aquando da morte de um familiar. Os lugares onde vamos aterrar são avistados com ânimo, mas também antecipam tudo o que nos pode afugentar.
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Inéditos Expresso
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