"Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desviam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, de um verde tão moço, que eram musgo macio onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através de muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava."
Esvoaçava pouco, Jacinto, liado nos afazeres citadinos e nos demais inventos da época, que todos chegavam e inundavam Paris. Entediado e aprisionado, Jacinto não encontrava civilização que lhe trouxesse alegrias de viver; nem as festas ou mulheres, nem modas ou inventos, nem sequer a agenda cheia, tudo o cansa e enfada. Até a vasta biblioteca.
"Com os morangos novos, apareceu um instrumentozinho astuto, para lhes arrancar os pés, delicadamente. Depois recebemos outros, prodigioso, de prata e cristal, para remexer freneticamente as saladas; e, na primeira vez que o experimentei, todo o vinagre esparrinhou sobre os olhos do meu Príncipe, que fugiu aos uivos! Mas ele teimava... Nos actos mais elementares, para aliviar ou apressar o esforço, se socorria Jacinto da dinâmica. E agora era por intervenção de uma máquina que abotoava as ceroulas."
Zé Fernandes, o amigo vindo das serras, testemunha a passagem do tempo pelo seu Príncipe, Jacinto, e o lento enfado com a Paris que lhe engole o apetite pela vida. É ele que narra e nos mostra a transformação de Jacinto em Jacinto de Tormes, um citadino convertido aos prazeres das serras, abraçando com ânsia a Natureza, absorvendo dela energia e vitalidade como há muito não sentia.
"Jacinto já não corcovava. Sobre a sua arrefecida palidez de supercivilizado, o ar montesino, ou a vida mais verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na beleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespara. E já não deslizava a mão desencantada sobre a face - mas batia com ela triunfalmente na coxa. Que sei? Era um Jacinto novíssimo. E quase me assustava (...).
E ali estava...
- Para todo o Verão?
- Não! Mas um mês... Dois meses! Enquanto houver chouriços, e a água da fonte, bebida pela telha ou numa folha de couve, me souber tão divinamente!"
«A cidade e as serras» de Eça de Queiroz é a última obra do autor e marca uma viragem na sua escrita, já que muitos estudiosos da obra queirosiana apontam Jacinto de Tormes como um reflexo do próprio Eça e das suas crenças e transformações.
Foto: Miradouro das Portas de Ródão
Cris Rodrigues, Maio'18
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