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quarta-feira, 23 de maio de 2018

«Ala feminina» de Vanessa Ribeiro Rodrigues :: Opinião


Estou fã dos livros das Edições Desassossego!

Este destacou-se mais pelo cariz feminino e os casos de vida. Em tempos tive ideia de fazer voluntariado para a alfabetização nas prisões, mas a idade foi um factor determinante e isso não aconteceu, mas fiquei sempre atenta. Como a série portuguesa «Dentro», no entanto há muito que não lia nada sobre o tema. Aconteceu agora e foi uma boa leitura, a deste trabalho de intervenção e sensibilização da jornalista Vanessa Rodrigues para reflectirmos sobre a condição humana e a fronteira estabelecida pelas prisões. Esta peça quebrara parte da fronteira entre nós (fora) e os outros (dentro).

"O testemunho é seco, curto, frontal, dissecado. Não pestaneja, como se tivesse repetido esta ladainha tantas vezes que parece que já sai desta forma automática, sem rodeios. E Catarina fala lacónica, sem desenvolver a história. Para ela, aquela não é a sua história. Economiza as palavras, como se desconhecesse a própria narrativa. Ou a quisesse esquecer."

Os testemunhos são realmente secos ou parcos em detalhes, as narrativas espelham a "vida descontinuada" e interrompida, efeito talvez menos nefasto do encarceramento. A falta de esperança, a solidão, o desapego, a ausência de perspectivas e a dificuldade de retornar à vida activa, serão efeitos bem mais nefastos nas vidas destas mulheres presas. A resistência que a vida da prisão lhes pede e algumas oportunidades que existem lá dentro, serão outra sentença, uma mais catártica, que se espera que dê frutos e as endurece para uma outra vida que não aquela que as levou até ali. Algumas mais do que uma vez. 

"Às vezes ouve-se um berro. É Rose de novo. Rose presente nesta história, impondo-se sem querer participar. Tem voz grave. Só o som está autorizado a sair a sair destes muros. Há árvores com raízes de fora, a querer sair da terra. Vejo um prédio praticamente sem pintura (...) As paredes terão sido brancas? Amarelo-claro? Beges? Já mal se percebe a qual pantone de tinta pertence aquela parede. O pantone da erosão."

A erosão maior lá dentro, talvez seja a da solidão, corroendo-lhes os sentimentos e as relações. Os filhos são as maiores preocupações; os que nascem lá dentro ou aqueles que ficam cá fora. Em ambos os casos são igualmente privados pelo encarceramento das mães. 

"Os filhos podem ser verbos na vida de homens e mulheres porque são sempre o futuro. Porque a vida ali dentro deixa um rasto de saudade permanente, nunca mitigado pelas visitas, tudo é sempre pouco."

Mesmo nesse pouco, dado pelas visitas ou conseguido pelo trabalho dentro da prisão, estas mulheres tentam levar a sua vida de acordo com a sua pena. Algumas têm recaídas. A droga é uma das maiores causadoras. Mas a família, a sociedade, o trabalho, as dificuldades ou o desejo de facilidades também se relacionam com os desvios que as levam a este caminho a que é preciso dar voz, conforme Vanessa Rodrigues afirma diversas vezes. 

Algo que ganha uma voz maior que todas, é o tempo. O tempo na cadeia parece ser medido de outra forma, é o que relatam as mulheres deste livro. A reclusão aguça a forma como se sente a passagem do tempo. Essa é outra coisa à qual a jornalista quer dar voz. Há a urgência de se ocupar!

"Lina está há dois anos e meio em Tires. A maioria das reclusas prefere cumprir pena a trabalhar, por causa dessa unidade universal quasi-invisível, a grandeza física que se mede com base na duração de fenómenos periódicos: o tempo. (...) é reflectir sobre o tempo, a cadência dele e a forma como ele fala connosco. (...) trabalhar é uma espécie de ilusionismo para o real (...) E, com o corpo cansado a saudade espanta."

Ao longo destas mais de 250 páginas somos confrontadas com testemunhos que denunciam um nó que se reflecte nos olhos. Nós que o cérebro tenta deslindar nessa solidão e nesse tempo que será sempre demasiado mesmo quando ocupado. É esse o ensinamento maior. Isso e uma frase de Eduardo Galeano que a autora cita:
«Assobia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.» 


Uma edição da
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