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domingo, 29 de setembro de 2019

«Uma Questão de Conveniência» de Sayaka Murata - Opinião


«Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo (...).
Naquele momento, e pela primeira vez, eu fazia parte da humanidade. Acabo de nascer, pensei. Aquele dia marcou sem dúvida o meu começo como peça do mecanismo do mundo."

Keiko Kurukura é uma peça na engrenagem do mundo do trabalho, mas mais do que isso é, no seu entendimento, o trabalho que define e convenciona toda a sua existência. No manual de funcionamento e de regras de atendimento da loja de conveniência ela descobriu um manual para a vida. Entre stocks de ramen e oniguiris, umas quantas vénias e muitos Irasshaimasê, Keiko vai-se definindo como pessoa, seja na tentativa de estabelecer amizades, seja no corresponder ao que é socialmente aceite e pedido às mulheres. No entanto, a loja de conveniência não é um local conveniente para se continuar década após década a trabalhar. Que tipo de vida ira Keiko conseguir? Que homem quererá casar com ela? Estas perguntam não atormentam Keiko, mas são motivo de conversa entre conhecidos e familiares, que a analisam e criticam directamente na sua cara, mostrando-lhe que não corresponde ao padrão de sociedade para uma mulher japonesa da sua idade. 

"Os olhos de quem despreza uma coisa são particularmente fascinantes. Às vezes escondem o medo de ouvir argumentos contrários. Outras, trazem o brilho agressivo de quem desafia (...). Noutros casos, quando o desprezo é inconsciente, os globos oculares parecem cobertos por uma película, envoltos no prazer extasiante que o sentimento de superioridade provoca nas pessoas."

São estas breves análises que conferem transversalidade ao texto de Murata. Ela não retrata só a sociedade japonesa ou o mundo do trabalho nipónico. Como também não caracteriza só o socialmente aceitável para as mulheres lá do outro lado do globo. Não, nada disso. Murata consegue em poucas linhas e por vezes num tom quase adolescente caracterizar o mundo e a forma ancestral como ainda se olham certas situações. E prova ainda, que a normalidade ou o ser-se ajustado à realidade são coisas tão difíceis de definir quanto cada individuo per si.

"O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. O seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos. 
Esse é o motivo que me faz pensar que preciso de me curar. Se não o fizer, serei dispensada pelas pessoas normais..." 

O mais interesse de todo o livro é fazer-nos pensar precisamente no que são pessoas normais ou no que é aceite como normalidade.


sábado, 21 de setembro de 2019

«O que fica somos nós», Jill Santopolo :: Opinião



“Durante anos senti-me culpada. Culpada de nos termos beijado a primeira vez enquanto a cidade ardia, culpada por ter sido capaz de me perder em ti naquele momento. Mas, mais tarde, compreendi que não éramos os únicos. As pessoas confessaram-me, em sussurros, que tiveram sexo naquele dia. Que fizeram um filho. Que ficaram noivos. Que disseram «amo-te» pela primeira vez. Há alguma coisa na morte que faz as pessoas quererem viver. Naquele dia queríamos viver, e não nos culpo por isso. Deixei de nos culpar.”

Este romance de Jill Santopolo está cheio de culpa e ambiguidades e talvez seja isso que o torna tão plausível.
É a culpa por não se ter o condão de adivinhar qual é o destino de cada um e de uma vida a dois.

Lucy, Gabe e Darren compõem um enredo cheio de encontros e desencontros e até um certo abandono. São vidas cheias, mas ao mesmo tempo vazias, vidas em função de outras vidas; de objectivos, de sonhos, de certezas. Certezas que a vida se encarrega de abalar e baralhar.
Mas mais do que tudo, e como não podia deixar de ser, há aqui um amor absorvente, vivido numa medida maior e com contornos de tragédia. Lucy e Gabe conheceram-se a 11 de Setembro de 2001. Ainda assim, e que por mais que se amem, anos a fio, são pessoas diferentes e seguem - separados - vidas independentes.

"(...) sempre me pareceu que pertencias a ti próprio e que te emprestavas a mim quando te apetecia; nunca te possui completamente"

Mas quem possuí quem, se por vezes é tão difícil possuirmo-nos a nós mesmo!? É nessa dificuldade que Lucy avança com a sua vida e conhece Darren. E toda essa parte mais cor de rosa foi deliciosa de ler, tem detalhes muito bem conseguidos e cenas muito reais. No entanto, o que incomoda (e não sei se essa é a palavra certa) é percebermos que toda a narração é dirigida a Gabe, como se Lucy lhe relatasse a sua vida, numa carta sem fim, anos e anos seguidos.
Gabe é um fantasma maior e assombra todas as outras coisas: a maternidade, a carreira, o casamento ou a família que parece estável e completa.

"Vemos tudo através do filtro dos nossos desejos e arrependimentos, das nossas esperanças e medos."

Para além dos filtros e dos arrependimentos em que o livro nos faz pensar, leva-nos igualmente a reflectir na forma como as relações nascem e se desmoronam, e o difícil que é encontrar o equilíbrio.

Foi uma boa leitura e recomenda-se, seja para leitores apaixonados ou corações despedaçados.