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terça-feira, 1 de setembro de 2020

«Estou viva, estou viva, estou viva.» de Maggie O'Farrell :: Opinião

 


"Respirei fundo e ouvi o bater do meu coração.
Estou viva, estou viva, estou viva."
Sylvia Plath, A Campânula de vidro

Respire fundo também o leitor, pois vai precisar. Este livro reúne 17 episódios onde a ameaça de morte foi uma possibilidade, uma constante e um pensamento ao longo da vida de O'Farrell. Nesses textos, que fluem como um romance, o leitor sente-se impelido a avançar, dono de uma curiosidade mórbida, pela proximidade de alguns episódios ou simplesmente por ser um livro muito bem conseguido, quer pela escrita escorreita, quer pela frieza com que certas palavras nos atacam e mexem com a nossa sensibilidade. Estranho? Talvez. Talvez seja mais fácil sentir enquanto se lê, por isso, leia este livro.

Para já, pense nisto: de quantos atropelamentos fugimos nós ao longo da vida? Desses "foi quase" dos quais saímos ilesos, avançamos como se nada me pudesse tocar, nada de mal pudesse acontecer, desde que eu pudesse continuar em frente, continuar a correr, continuar em movimento.

"(...) o avião que não apanhámos, o vírus que nunca inalámos, o atacante com que nunca nos cruzámos, o caminho que não tomámos. Estamos, todos nós, a deambular num estado de ignorância inocente, a pedir tempo emprestado, a aproveitar os dias, a escapar aos destinos, a escapar por uma nesga, sem saber quando será dado o golpe. Como escreve Thomas Hardy sobre Tess Durbeyfield: «Havia outra data... a da sua própria morte; um dia que se ocultava, invisível, entre todos os outros dias do ano, sem dar sinal ou fazer som quando ela passava por ele, a cada ano; e ainda assim estava inteiramente presente. Quando seria?»"

Quando seria? Como seria? Que parte do corpo atacaria?

Dividido em 17 episódios que atacam partes dispares do seu corpo, Maggie O'Farrell começa por se sentir ameaçada no pescoço, marca essa que nunca a abandonará, no entanto, a ameaça, a sentença de morte prematura chega ainda mais cedo em 77, quando ainda miúda se chegam a conclusões assustadoras que irão encaminhar decisões e experiências futuras, no entanto, o espírito fugidio e escapista da autora talvez tenham sido determinantes para partes do corpo que surgem mais adiante e as conclusões que partilha com os leitores.

"Vivi grande parte da minha vida perto do mar: sinto a sua atração, sinto-lhe a falta se não o vir regularmente, se não caminhar à beira-mar, se não mergulhar, se não respirar o seu ar. (...) Desde criança que nado sempre que posso, mesmo na água mais fria. É, na minha opinião, uma experiência muito reconfortante. Nos seus Sete Contos Góticos, Karen Blixen escreveu: «Conheço uma cura para tudo: água salgada... de uma forma ou de outra. Suor, ou lágrimas, ou o mar salgado.»"

Para além de considerações muito acertadas, existem boas referências e um ritmo imenso que prende o leitor a cada página, junto com descrições muito vívidas e partilhas muito transparentes, diria até de uma raridade genuína. 

"Sou a única abstémia de chá da minha família. Acho que eles o consideram uma perversão incompreensível. Para mim, o chá sabe a restos secos de relva, bolor de folhas diluído, composto húmido misturado com um toque de fluídos corporais bovinos. Nunca o consegui suportar."

"Está alguma coisa a mexer-se dentro de mim, nas profundezas dos canais em espiral do meu estômago, algo com garras, com presas, com intenções malévolas. (...) É como se tivesse engolido um demónio."

São vários os demónios que sugam a energia a esta autora, um deles é o da rotina, da doença ou da normalidade, para combatê-los, escreve e viaja, só isso é capaz de fazer frente à inquietude borbulhante que nunca a abandona.

"Depois de ter percorrido o Mediterrâneo em 1869, Mark Twain disse que viajar era «fatal para o preconceito, a intolerância e a mesquinhez."

Ler este livro também tem algo de fatal, é uma valente viagem, recheada de sabedoria e partilha que de certeza, tocarão no âmago de algumas memórias pessoais. 

*

Uma descoberta que este livro me trouxe foi o podcast «Contos Não Vendem» de Joana Neves, tradutora deste livro. Um dos episódios traz-nos o conto "O Que Veio Salvar-me", de Virgilio Piñera, lido por Manel Moreira que faz muito bem a ponte para o tema da morte, especialmente para o conto «Corpo Inteiro» neste livro de O'Farrell.

Vale a pena ouvir, aqui.


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