(...) Fumar um porro para dormir é típico dos cobardes. Daqueles que se recusam a negociar com as próprias angústias e as atiram para trás das costas para fechar os olhos em paz. Mas é uma paz podre. O charro é um falso amigo do sono. (...) De manhã, ao acordar, a bochecha amarfanhada e pegajosa de baba não é sinal de repouso. Com a erva, as noites são tão nubladas como um banho turco. Há pouca luz, está húmido, não se vê a grande distância e é tudo lento."
Dando o devido destaque a este parágrafo, o leitor tem uma apresentação da acção e um aviso: o céu vai estar nublado e com poucas abertas, já que este irmão mais velho, reside nos subúrbios de Paris, num emaranhado de problemas, dúvidas e preocupações, onde as palavras se confundem entre dialectos, orações e política e "(...) Síria, Daesh, Estado Islâmico. Terroristas. As palavras do medo. Já não era preciso dizê-las, elas andavam no ar (...)"
Um irmão mais velho entregue ao volante de um Uber, para desgosto de um pai taxista, faz-nos ver a proximidade dos problemas que se vivem em França tal como acontecem aqui, no entanto, eles têm ainda a pressão e o dedo apontando por serem filhos de emigrantes e árabes, por isso, o irmão mais novo, enfermeiro, decide que o seu destino deve ser outro, um local onde se sinta mais em casa e seja realmente útil. E é aqui que a nebulosidade aumenta e cobre o céu todo. Os pensamentos confundem-se mais a cada baforada, desenterrando o passado, revolvendo a ânsia da aceitação, o sentimento de pertença e o eterno questionar pelo sentido da vida.
"Estava no Chade, man. Um nome mágico, místico.O meu primeiro inimigo cumprimentou-me. Era grande, redondo e amarelo, e caía-me a pique sobre a cabeça, um sol de chumbo capaz de enlouquecer um leão. (...)
No Chade tornei-me verdadeiramente francês. Brancos, portugueses, magrebinos, negros, pouco importa, o uniforme abafava as diferenças. Todos iguais. Irmãos como eu. Vencidos pela vida. Antes da tropa havia por vezes droga, por vezes lutas, por vezes pobreza (...) Os mais perigosos estavam lá por vocação. Toda esta gente tinha em comum chegarem cheios de paleio de certezas sobre a vida e sobre si mesmos. Mas repletos de falhas e cheios de dúvidas. A tropa esmagava-nos para nos tornar mais fortes. Colmatava as brechas, mas não reparava as falhas."
Também sobre a religião fica-se na dúvida se vem colmatar as falhas ou abrir brechas maiores, tecendo o irmão mais velho considerações sobre o Islão: "(...) Cada um encontra sapato para o seu próprio pé, e o número que deseja andar na direcção que escolher." E sendo dessa forma: um peso, duas medidas, dificulta entendimento e aceitação mesmo no seio dos que seguem a religião e por isso mais difícil de entender motivações alheias que encaminham o irmão mais novo em direcção à Jihad.
Porém, há sempre um lado descontraído, ao sabor de mais um bafo, e que segue várias linhas de pensamento, parecendo não dar grande importância a nenhum em particular, mas fazendo considerações irónicas, mordazes e em certos aspectos muito acertadas, que passam pelas polémicas mais actuais, tendências, tecnologia, relacionamentos, corrupção, a Uber e os TVDE's ou coisas como fazer contas à vida e ver que não se conseguem pagar todas as despesas e aí entra o lado ecológico, as manifestações, as reviews dos clientes e tudo o que mais couber numa mente atarefada no trânsito parisiense.
"Esta moda das duas rodas deve confundir os serviços policiais, e estou certo de que as estatísticas de controlos de identidade o testemunham. Como diferenciar um barbudo muçulmano de um hipster numa bicicleta sem mudanças. O problema é sério."
O problema é sério e a dúvida persiste, mas o que importa mesmo saber é se o mano mais novo é ou não um terrorista e o que faz no seu regresso a Paris.
"A dúvida é uma torneira que pinga. Gota após gota, a dúvida faz ninho no chão e cava o seu caminho terra adentro.
(...)
O importante não é a verdade, é criar uma verdade, uma boa verdade. E essa verdade é convencê-los de que não sabias de nada."
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