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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

«Em tudo havia beleza» de Manuel Vilas - Opinião

 


"Oxalá fosse possível medir a dor humana com números e não com palavras incertas. (...) Todo o homem acaba, mais dia, menos dia, por enfrentar a insignificância da sua passagem pelo mundo. Há seres humanos capazes de o suportar, eu jamais o suportarei."

Vilas afirma desde a primeira página essa dificuldade junto com a dor que tem a braços, no meio do desvanecimento geral de todas as coisas. Para organizar essa dor e ruína emocional, faz este balanço entre a importância de recordar passados e homenagear os nossos mais queridos. Cobre-se de um pranto que verte no romance, o choro que outrora afogou na bebida, são páginas e páginas dessa busca incessante pela alegria e satisfação de olhar para o futuro sem estar aterrorizado pelas pazes pendentes com o passado.

"Pois o passado tem para quase todos os seres humanos a concretude de uma personagem de romance."

E nessa concretude de sacralizar e entender a dor, Vilas acrescenta: "A dor não é de todo um entrave à alegria, tal como eu entendo a dor, pois para mim está vinculada à intensificação da consciência. O sofrimento é uma consciência expandida."

Por isso mesmo, «Em tudo havia beleza» é um romance expansivo e até caótico, onde Vilas pretende entender o que foi acontecendo na sua família e simultaneamente em Espanha, colmatando a comunicação que faltou enquanto os pais eram vivos, quando foi casado ou tinha os filhos mais debaixo da sua asa. 

O registo é confessional, chega a parecer vulgar e até indiscreto, imiscuindo-se no leitor, mas talvez seja a forma de expiar a culpa, de matar demónios, de deixar um testamento dos seus pensamento mais privados, sufocados no homem da gravata falsa, amarrada a um pescoço falso, uma gravata humilhada de nó triste, condenada a um amarelo esbatido, cansado, preguiçoso.

"Um divórcio desperta a culpabilidade, porque a culpa é um exercício de relevo, é relevo sobre terra lisa. A vida de um ser humano é a construção de relevos que a morte e o tempo acabarão por alisar."

É nessa construção de relevos que se insere este romance. É uma luta contra o desamparo e o desmoronamento da ternura, negando terreno à desmemória e apelando à melancolia. Relembrar pausadamente, mesmo que com o pensamento em rodopio, respeitando a nossa individualidade que começa com o saber e conhecer a nossa história que começou na vontade dos nossos pais em nos dar vida. 

"Ter alguém à nossa espera algures é o único sentido da vida, e o único êxito."

No entanto, esse único sentido não tem sentido único e por vezes no relato caótico, entre saltos cronológicos e alguma revolta, existem contradições onde o narrador se desdiz das anteriores afirmações muito determinadas e até moralistas que acabam por se esbater na culpa e no nervosismo de um enorme vazio de quem questiona e contempla tudo. 

"O meu coração parece uma árvore negra cheia de pássaros amarelos que guincham e perfuram a minha carne como num martírio. Entendo o martírio: o martírio é arrancarmos a carne para estarmos mais nus; o martírio é um desejo de nudez catastrófica."



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