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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

«Homens e Bichos», de Axel Munthe - Opinião

 


Em boa hora me cruzei com este velhinho exemplar, habilmente traduzido com esmero por António Sérgio, trazendo até ao leitor as curtas narrativas de Axel Munthe que revelam um humanismo enorme ao narrar "inconsoláveis resignações" em relatos simples e belos, porém pesados, que denunciam a fome, a luta contra a doença e uma pobreza que esmaga e até humilha. Em quase todos os contos há preocupação, compaixão e cuidado para com os animais, tornando-os elementos centrais como vemos logo em "Para os que gostam de música".

Para além de valorizar e pedir que não se maltratem os pobres, os doentes, os imigrantes, Munthe pede, de forma subtil, atenção às mulheres, mães, irmãs, cuidadoras e gentis, com quem a sociedade é injuriosa e injusta.

"A caridade pública não a ajudaria, porque era estrangeira, e a caridade particular não desceria até ela. deveria escolher entre a miséria e a rua; escolheria a miséria, por amor da criança. Era certíssimo que a Sociedade lhe não daria prémio por tal escolha, por isso a virtude jejua e gela (...)"

Munthe também não esquece a Natureza, tão enaltecida em " O Monte Branco, Rei das Montanhas" que nos conduz num périplo pleno de atmosfera estival até ao peso imponente e belo do perpétuo inverno montanhoso. 

"O trilho que tomávamos era cada vez mais íngreme, e iam rareando progressivamente as filas de guardas de mantos verdes que vinham participando da nossa escalada. (...).
Sentia-se bem que a algidez da morte ia penetrando progressivamente por todas as veias da montanha, e que o coração da mãe Natureza afrouxava também o seu pulsar (...).
E eis-me de rosto com o Rei das Montanhas (...) um esplendor indizível (...). Nenhum eco dos vales se elevava até ali, a perturbar o seu altivo repouso."

Repouso pede também o autor para os animais. De "Ménagerie" ao "Um grito no ermo", denuncia a forma como são tratados, revelando tristeza pelas agruras e sofrimento de uma vida enjaulada ou votada ao abandono. A sua escrita expõe e denuncia, clamando por respeito pelos animais como prova de um desenvolvimento maior que nos separa do lado primitivo e selvagem. 

"Têm os focinhos lívidos de frio, quando dão saltos para aquecerem um pouco, riem os gaiatos trocistamente e param os transeuntes, para os desfrutar - para chacotearem desses pobres, inconscientes palhaços, que servem ali para atrair o público ao espectáculo da tortura dos seus irmãos na miséria."

E no entanto, também confessa, a crueldade da meninice "(...) reconheço nódoas de sangue nos dedos delgados da criança de outrora, que vieram a enferrujar-se em nódoas de pejo nas recordações de infância do homem de hoje. Humilha-me a ideia  de que matei (...)"

Em "Os cães de Capri", revela um lado mais político e crítico, mas não esquece de homenagear a doce transição entre estações do ano e as suas tradições e afazeres tão necessários.
A medicina e a sua condição de médico, bem como a religião ou a Morte são também temas nos seus relatos, numa suma de preocupações que revelam a sua humildade e sensibilidade. 

"Quando assim nos estendemos sobre o chão relvoso, a observar esse mundo, acabamos sempre por nos sentir pequenos. 
Por fim, parece-me que não passo de uma formiguinha débil, afanosa com o peso de uma carga incómoda, numa mata sem trilhos." 


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