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sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

«Os dias do abandono» de Elena Ferrante :: Opinião

 

Cheguei até este «Os dias do abandono» de Elena Ferrante por ter lido «Laços» de Domenico Starnone e numa pesquisa sobre o autor italiano, encontrei uma fofoca literária sobre como o livro de Ferrante era uma resposta do outro lado deste abandono, explorando a hipótese de terem sido marido e mulher, mas como a identidade de Ferrante permanece um mistério, este detalhe adensa o enredo em torno de ambos os livros. 

Resposta ou não, a verdade é que são inúmeros os pontos em comum e isso é muito curioso de se ir descobrindo, especialmente se lermos com pouco intervalo cada um dos livros. 
Eu já tinha apreciado muito o livro de Starnone, tanto que o reli este ano, mas quando peguei neste «Os dias do abandono» senti que tinha entrado numa dimensão maior da dor, numa espiral opressiva que eleva a definição de abandono.

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"A minha família de origem era sentimentalmente ruidosa, demonstrativa, e eu, sobretudo durante a adolescência, até mesmo quando ficava muda e com as mãos a tapar os ouvidos (...) sentia a opressão de uma vida em silêncio em que tudo parecia tornar-se objeto de exibição por meio de algumas palavras demasiado veementes ou de um movimento pouco sereno do corpo. Assim, aprendera a falar pouco e depois de refletir, a nunca ter pressa, a não correr sequer para apanhar o autocarro, a prolongar o mais possível os meus tempos de reação, preenchendo-os com olhares de perplexidade e sorrisos de incerteza.

Na urgência de compreender, Olga, a quem a família histriónica e gesticulante, ensinou a calar e a aumentar o tempo de reacção, protegendo-se, tenta observar ao microscópio, ano após ano mais de 15 de casamento que acabam abruptamente. Inicialmente, "(...) tudo isso me fazia sentir como um pugilista que não se lembra dos gestos de luta apropriados e vagueia pelo ringue com as pernas moles e baixando a guarda."

De olhar perplexo, pernas moles e cheia de incerteza, Olga não encontrava nada que não assinalasse as consequências práticas do abandono. Foram horas longas, acompanhada por uma multidão de palavras mortas."

A narrativa de Ferrante esmaga e centrifuga o leitor, tal é a intensidade do abandono em que Olga se encontra. Um abandono tão espesso e tão cheio de camadas, que existe quase uma desapropriação de si mesma, das suas vontades, do seu Eu e isso é totalmente visível pela forma cavalgante como o enredo se adensa, engolindo seja o que for que exista para além daquele sofrimento que tudo envolve e enegrece.

As palavras mortas aquelas que disseram e já nada valem ou as que gritaram na febre do abandono, nada valem ou alteram o passado, a frustração e as explicações que não preenchem e também Ferrante foco a espessura da dor e do abandono com reflexões sobre o rotineiro do dias: "um contador da vida que passa deixando um rasto de angústia", associando esse contador ao corpo, tal como é referindo em «Laços» o corpo do outro como estranho e invisível. E a incredulidade de tomar consciência que quando se deixa de ver o outro, deixamos de nos ver a nós. É o casamento que anula o indivíduo ou há uma predisposição intrínseca numa das partes?

No livro de Ferrante há uma aspereza maior, especialmente associada à maternidade, esse evento que altera o casal, a vida, mas mais ainda o corpo da mulher e que também aqui é questionado, tal como no de Starnone como um marco que redefine (e condena?) o casal.

"E registava também, entre as parcelas das contas, a intervalos, o meu estado de espírito: uma bola de comida que os meus filhos mastigavam ininterruptamente; um bolo feito de matéria viva que amassava e amaciava a todo momento a sua substância viva para permitir a duas sanguessugas vorazes que se alimentassem de mim, deixando-me na pele o cheiro e o sabor dos seus sucos gástricos. O nojo da amamentação, dessa função animal. E, mais tarde, os vapores mornos e adocicados das papas. Por mais que me levasse, aquele mau cheiro a mãe não me saía do corpo. Mário às vezes colava-se a mim, abraçava-me e possuía-me ensonada, também ele cansado do trabalho, sem sem emoção. Fazia-o, atirando-se à minha carne quase ausente, que sabia a leite, a bolachas, a farinhas, cheio de um desespero pessoal que aflorava o meu sem o reconhecer. Eu era o corpo de um incesto, pensava atordoada pelo cheiro do vomitado de Gianni, era a violação da mãe, e não a posse de uma amante."


É realmente uma escrita brilhante, rica e complexa que vai ao fundo de cada interrogação e por isso mesmo, dura e até bruta, explorando, na mesma medida, tanto o supérfluo como a essência, deixando desde o início essa pergunta: numa relação o que é supérfluo e o que é essencial? E pode haver quem tenha mais prioridade no sentir?

"Sim, era estúpida. Tinha os canais dos sentidos obstruídos, a corrente da vida deixara de correr através deles havia tanto tempo que nem eu já sabia quanto. Foi um erro terrível encerrar o sentido da minha existência nos ritos que Mario me oferecia com um prudente entusiasmo conjugal (...) Fora um erro terrível, sobretudo, acreditar que não podia viver sem ele (...) 
(...) e por que razão eu, que opusera sempre à desordem ocasional do sangue a estabilidade da nossa ordem de afectos, experimentava agora tão violentamente o remorso da perda, uma dor intolerável, a ânsia de me desligar da teia de certezas e de reaprender a vida sem a segurança de quem já sabe tudo."

Sem dúvida que estes dias de abandono são narrados com mestria e simulam muito bem o que a narradora-protagonista deseja que a sua escrita fosse, quando antes de casada alimentava sonhos com pedaços de papel.

"Queria escrever histórias sobre mulheres dotadas de outros recursos, mulheres cujas palavras fossem invencíveis, e não um manual da mulher abandonada subordinando ao amor perdido todos os seus pensamentos. Era jovem alimentava ambições. Não gostava da página demasiado fechada, como uma persiana completamente descida. Gostava da luz, do ar que entrava por entre as ripas da persiana. Queria escrever histórias cheias de correntes de ar, infiltradas de raios de sol onde dançassem partículas de poeira. E depois, gostava da escrita que nos faz debruçar a cada linha e olhar para baixo, sentindo a vertigem da profundidade, as trevas do inferno."

E conseguiu!