«Laços» de Domenico Starnone (Alfaguara, Junho 2018), inédito em Portugal até este livro, recebeu no ano passado a adaptação cinematográfica, «Laços de Família», filme de Daniele Luchetti que não recebeu críticas equiparáveis às tecidas ao livro, no entanto, saber da sua estreia em Portugal fez-me querer recordar este enredo e a releitura foi ainda melhor do que o primeiro contacto com esta família disfuncional, cujo a relação segue caminhos sinuosos após o abandono (e regresso!) por parte de Aldo, o pai e marido adúltero, após um caso com uma mulher mais nova.
As fragilidades do enredo prendem-se com um lado banal das acções do casal: ele vive deslumbrado por Lídia e agradecido por ela olhar para ele, sentindo-se mais vivo do que nunca e Vanda encarna o papel de mulher traída da forma mais acérrima e tóxica possível, desgastando-se e desfigurando-se enquanto recorda o quanto hipotecou de si em prol do casamento e dos filhos. No entanto, é precisamente a forma como Starnone passa dessa banalidade, de forma muito simples e concisa, para as motivações que fazem girar este casal que torna o livro duro e brilhante. É como se o autor fizesse um raio-x ao lugar mais fundo e íntimo dos pensamentos destas quatro pessoas enquanto as décadas avançam e isto apenas em pouco mais de cem páginas. A capacidade de tecer toda uma cena, de anos, num pequeno parágrafo é de um poder de concisão que espanta e abana o leitor.
“Disparataste longamente, com pedante tranquilidade, acerca dos papéis dentro dos quais nos tínhamos aprisionado ao casarmo-nos – o marido, a mulher, a mãe, o pai e os filhos – e descreveste-mos – a mim, a ti, aos nossos miúdos – como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, obrigadas a repetir para sempre, os mesmos movimentos sensaborões.”
“As pernas sobem agora com base em hábitos adquiridos. E a tensão, a emoção, a felicidade do passo perderam-se, como se perdeu a singularidade da maneira de andar. Deslocamo-nos achando que o movimento das pernas é nosso, mas não é verdade, sobe connosco esses degraus uma pequena multidão à qual nos adaptámos, a segurança das pernas não é senão o resultado do nosso conformismo. Ou mudamos o passo – concluis – reencontrando a alegria do início ou ficamos condenados à normalidade mais soturna.”
Tudo nesta narrativa ganha outro impacto pelas palavras que são escolhidas, ci-rur-gi-ca-men-te e com uma precisão geométrica, não vá a palavra errada estragar o pouco equilíbrio que sobra ou arruinar uma pequena conquista. E ruina é bem o que se analisa com o final entregue às mãos dos filhos: Sandro e Anna.
“Olhei-os demoradamente. As crianças empurravam-se, insultavam-se, a mãe ameaçava-os. Levava um sobretudo fora de moda, eles calçavam sapatos deformados. Pensei: é a minha família a voltar do esquecimento, e vi de repente o meu lugar vazio ao lado deles, convenci-me de que tinha sido aquele vazio a modifica-los daquela maneira.”
Dito de forma disparatada ou não, a verdade é que Aldo tece desde o início palavras chave que determinaram a relação familiar: o conformismo, o casamento castrador, os filhos como extensão necessária de um casal, um repetir de movimentos que esmaga vontades e alegrias e o aprisionamento que são os anos que ainda lhes faltam. E aqui importa salientar que os que sobram e actuam como espelho são os filhos, levantando questões como: numa família tem sempre de existir o carrasco e a vítima? De que forma os papeis se invertem? E para a plateia (os filhos) o que sobra? Com os anos nada mais se acrescentar a não ser o cansaço?
"Agradava à Lídia, agradava a toda a gente. E, enquanto isso, uma névoa ia cobrindo o passado em que me sentira lento e inconsequente. Desvaneceu-se a casa de Nápoles, desvaneceram-se os parentes, os amigos. Permaneceram vivos, persistentes, a Vanda, o Sandro, a Anna, mas só enquanto a distância não lhes retirasse a energia, não retirasse espessura à dor."
Esta ideia da espessura da dor versus a distância e a invisibilidade é muito interessante e explorada mesmo quando o casal habita a mesma casa e envolve ainda outra questão: a do corpo estranho. É só o corpo da amante que é um corpo estranho ou os anos e a habituação ao corpo do outro também nos fazem estranhar um corpo que já não vermos? Quando é que o outro se torna invisível?
Oscilamos entre considerar uma família como um laço constante, apertado e que protege; para a considerar um somatório de jeitos que se dá para unir vários fios, com gestos automáticos e de olhos fechados, gestos já sem sentido. Dinâmicas inofensivas que roçam a ameaça.
"Sinto o meu pai e a minha mãe. Sinto-os pelas divisões silenciosas, juntos e separados. O Sandro murmurou: esconderam-se um do outro, mas não sem deixarem a ameaça de se descobrirem a qualquer momento."
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