terça-feira, 28 de novembro de 2023

"Baiôa sem data para morrer" de Rui Couceiro - Opinião

 

Chegamos a Gorda e Feia pela mão hábil e minuciosa de Rui Couceiro que encontrou na voz de um narrador anónimo, o veículo ideal para fazer chegar aos leitores as peripécias de uma aldeia onde de repente (parece, mas não é) todos começaram a morrer. Mas este professor-narrador não conta só a história dos que vão morrendo, conta também a história de uma região, de uma família – a sua – e de uma comunidade que também se fez família pela proximidade que o isolamento traz. E nessa família aceitaram este narrador-forasteiro que com a calma a que o calor obriga e a imensidão dos campos inspira, se fez menos pacóvio urbano e mais destemido perante a fantasmagoria rural.

Cúmplice nessa transformação estava Baiôa. Joaquim Baiôa, um homem enrugado, quase tanto como uma uva ao sol. Um homem que vivia na inquietação de cuidar, limpar, edificar, lutar… era a sua luta por permanecer, por não deixar morrer a aldeia onde sempre tinha vivido.

“Baiôa vivia consciente de que a inquietação edificava, sentia-se sabedor de que nada de mais humano existia do que o desassossego. (…) Vivia em agonia, sentindo o desespero do fim através das mortes dos outros, torturas permanentes para ele que ficava e não sabia por quanto tempo.”

Não era apenas Baiôa que viva em desassossego, também o narrador se sentia em desesperos, alguns até os desconhecia.

“Em certa medida (…) valeu-me o rio. (…) O rio, que em rigor é um ribeiro, será nestas páginas sempre rio, por absoluto merecimento de tal promoção: não só é entidade viva em terra de mortos (…) No rio, via o meu reflexo parado sobre as minhas ânsias correntes, duas partes de mim que se separavam uma da outra e das reflexões deixadas nas margens.”

Não são só as reflexões que o narrador deixa nas margens. Também lá vai ficando o telemóvel e as incontornáveis redes sociais que tanto alimentavam os seus dias e as suas insónias, coisa crónica que o apanhava constantemente. Ou melhor dizendo, coisa que lhe abalroava de todo as ideias e as certezas, de tal forma que até ouvia a mãe: “Nós não somos nada, filho,”

É entre estes cenários de tormentos e mesmo fustigados pelo calor que Baiôa e o narrador vão reconstruindo casas na aldeia enquanto compõem as abordagens oficiais que regem os trabalhos no Observatório da Morte.

«Baiôa sem data para morrer» é isso mesmo, um peculiar observatório das mortes em Gorda e Feia, uma incrível sucessão de acontecimentos com a qual o narrador se viu a braços, como quem toma notas naqueles papeizinhos amarelos com a banda autocolante a ficar-lhe presa em todos os seus movimentos. Até que, atulhado neles, se decide a escrever este livro, edificando assim uma homenagem às memórias da ruralidade que atravessa todos nós.

sábado, 11 de novembro de 2023

"O último acto em Lisboa" de Robert Wilson - Opinião


Robert Wilson converteu o género policial num épico, no entanto, tenho a sensação que enfiou o Rossio na rua da Betesga e expressão mais portuguesa não há para aquilo que faz ao longo de mais de 500 páginas. Há uma pesquisa imensurável e Wilson precisou cozê-la toda com ponto bem apertadinho para dar ao leitor uma viagem pela História recente de Portugal, sem esquecer detalhes de todo o género, no entanto, o diabo está nos detalhes. São demasiados. Nomes, referências, ruas, praças, patentes, expressões…. Tanto quantas as incontáveis personagens, mas… lá está, navegamos dos idos de 1990 e troca o passo para uma incursão à Alemanha nazi, para logo a seguir atravessarmos a serrania raiana portuguesa e entrarmos nos meandros do volfrâmio, cruzando a ruralidade inóspita com a ostentação da metrópole e as suas lides de espiões e quando o leitor está quase confortável com o que lê, mais um salto cronológico e a conspiração continua décadas atrás ou à frente e tanto estamos entre oficiais das SS como entre inspectores que tomam uma bica e um pastel e nata enquanto discutem trivialidades de um Portugal à espreita da viragem do século.

É intenso, é complexo, ganha ritmo, mas perde-o logo a seguir com a constante mudança nas personagens e com os infinitos detalhes. Os mal-afamados detalhes ;() Sem esquecer os que se disfarçam, mudam de rosto, de nome, de local… mal sabíamos nós que este «Último acto em Lisboa» era uma saga, embora o autor nos avise, disfarçadamente, pois também a linguagem usada é exímia e mestre do disfarce.

“Cheguei ao topo das gastas escadas de madeira e por instante senti-me como um homem a quem tivessem mandado carregar sozinho um piano.”

E lá vamos nós, empurrando o piano ou como Felsen, “(…) pisando e repisando o mesmo terreno , de tal modo que, se os seus pensamentos fossem passos, teria cavado uma trincheira circular até aos ombros.”

E a mestria do autor é essa, ele pisa e repisar, circularmente, cozendo com habilidade cirúrgica, uma conspiração que atravessa décadas e une as histórias que ao longo de muitas páginas teimam (assim parece) em não se cruzar. Sem esquecer, como estrangeiro que é, de ler, interpretar e escrever com humor, traços tão portugueses, que só nós português parecemos não ver, mas assim descritos tornam-se tão evidentes que não podemos fazer mais nada a não ser: rir!

“- A única coisa que os portugueses põem atrás das costas é a cadeira à hora das refeições. Vivemos com a história como se tudo continuasse a acontecer. Há gente nesta terra que ainda espera que D. Sebastião o Encoberto volte ao fim de quatrocentos anos para nos levar a cumprir Portugal…”

Entre factos muitos distintos, histórias e História, há ainda lugar para humor, roteiro turístico, crimes com investigações à portuguesa, especulações sobre heranças ancestrais, politiquices intemporais e um ou outro comentário romântico de pacotilha com pendor para o drama, ainda assim, a verdade não se escondeu debaixo do colchão como as notas de alguns, firmando a ideia “é tudo uma questão de negócios. O dinheiro não tem moral” ou a “impunidade dos tubarões”.