domingo, 11 de maio de 2025

(voltar a) «Como um romance» de Daniel Pennac

"O verbo ler não suporta o imperativo. É uma aversão que compartilha com outros: o verbo «amar»... o verbo «sonhar»... 
É evidente que se pode sempre tentar. Vejamos: «Ama-me!» «Sonha!» «Lê!» «Lê, já te disse, ordeno-te que leias!»
- Vai para o teu quarto e lê!
Resultado?
Nada.
Ele adormeceu em cima de um livro."


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(pelo) Direito de adormecer com um livro

E se o leitor adormecer não tem mal. «Como um romance» de Daniel Pennac é um óptimo romance para se ter na mesinha de cabeceira. É um excelente companheiro, nada reclamador, mesmo que numa amizade longínqua, em que apenas lhe prestemos uma visita uma vez por década. A última leitura havia sido em 2010 e há pouco tempo apeteceu-me abri-lo, reencontrar algumas ideias sublinhadas e prestar-lhe a devida homenagem: relê-lo 😍 "A repetição é tranquilidade. É uma prova de intimidade (...) Reler não é repetir, é renovar constantemente um infatigável amor."

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o Direito de Reler 

As relações privadas, com a leitura, antes e durante da mesma, o enamoramento com o livros, os personagens, as histórias... as palavras e os efeitos dos livros são algo que se encontra a cada página. Existem piscadelas de olho, sorrisos e gargalhadas... nostalgia. E uma certeza enorme de que, desde cedo, escolhemos o passatempo certo para nós: os livros e a leitura. 

E com isso, todo um Universo paralelo.

Um com silêncio e os amigos leitores. Logo depois as bibliotecas, as livrarias, a caça a alguma preciosidade num alfarrabista, uma feira de velharias... só porque podem existir livros, a areia da praia como marcador, ou o guardanapo, as notas soltas aqui e ali, o pó que se acumula em casa, porque encontramos sempre um livro inacabado... 

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O Direito de Ler em silêncio

Ler é ter um encontro com alguém para além de nós mesmos e ainda assim (parecer) estar sozinho. É rir em público, mais alto e com mais vontade que todos os outros e nem reparar que se riem de nós, por estarmos a rir sozinhos. Ler é encontrar intimidade com a solidão e o silêncio. E apreciar. Desejar esses momentos. Não querer mais nenhuma banda sonora a não ser a do cantar dos pássaros, a da leve brisa ou o rebentar das ondas e ter por companhia um cão sonolento a quem afagamos o pêlo, enquanto mudamos de posição e viramos mais uma página. 

"Ninguém se cura desta metamorfose. Não se regressa indemne de tal viagem (...)"

Os livros são um meio seguro para prender e manter acesso esse desejo de continuar a aprender. Eles criam o desejo, de aprender, de conhecer, de sonhar, de mudar, de se enraivecer, criticar, espernear...

É isso mesmo, ler é sentir! 

Mas Pennac pensa sobre num aspecto ainda mais importante: como conquistar leitores, como mantê-los focados nesta coisa se sermos sempre leitores-inacabados, sermos sempre aprendizes - absolute bigenners - estarmos sempre dispostos à surpresa e ao confronto, porque isto de ler e ler muito, também tem os seus percalços e revezes, perdas de entusiasmo e esquecimentos, mas feitas bem as contas o livro nunca nos cobra nada e espera-nos pacientemente, seja na mesinha de cabeceira, na estante ou na biblioteca onde vamos décadas e décadas e fio.

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O Direito de visitar a biblioteca como se fosse uma livraria

«Como um romance» é realmente uma preciosidade. É tantas coisas ao mesmo tempo que merece diversas leituras ao longo da nossa carreira de leitor. Mas uma ideia que desta vez me fez muito sentido foi pensar sobre a leitura versus a escola e em como existe uma suposta aversão à leitura. Pior, à leitura como fonte de prazer; e talvez porque na escola se associe muito os programas e as aprendizagens à obrigação. Então, como forma de combater isso, o estudante emancipado, assim que pode, põe fim à leitura e orgulha-se muito disso em idade adulta, é com altivez que diz, orgulho: "o último livro que li foi na escola." E por lá ficou a obrigação e o sofrimento.

Mas não será errado?
A leitura foi um dos meios usados para a aprendizagem, sem ela, pouco teria acontecido, por isso, ler e gostar de ler em idade adulta deveria ser uma celebração e uma homenagem à nossa infância. Ler é, para além de prazer, uma forma de liberdade.

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O Direito de querer mais leitores. Leitores em todo o lado. 

Numa próxima releitura e escrita de impressões vou focar-me nas leituras inacabadas, nos livros que temos vontade de deitar beiral afora; afogá-los na primeira poça, fechá-los, simplesmente. E fazê-lo sem culpas, apenas saber que estamos a ler mal o mapa...

"Mas se até agora não consegui atingir o cimo da Montanha Mágica, certamente que a culpa não é Thomas Mann.
O grande romance que nos resiste, não é necessariamente mais difícil do que qualquer outro... há entre ele - por maior que seja - e nós - por mais aptos que estejamos a «compreendê-lo» - uma reacção química que não resulta. (...)
Temos, então, uma opção: ou consideramos que a culpa é nossa, que nos falta um parafuso, que temos uma falha qualquer, ou vasculhamos a noção controversa de gosto e procuramos traçar o mapa dos nossos."

5+7=12 🤣😇
O Direito de Ler não importa o quê, não importa onde

E para controvérsias e vasculharmos noções de gosto ainda temos a nossa querida Roda dos Livros, mas sobre isso... 

10 - O Direito de não falar sobre o que se leu!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

"Os Dias Contados" , de João Tordo :: Opinião

Em "Os Dias Contados", João Tordo transporta-nos para fevereiro de 2013, onde um acidente na Serra Nevada desencadeia uma série de eventos que culminam no primeiro grande caso da subcomissária Pilar Benamor. Este thriller mergulha-nos na personificação do mal, mas não esquece as crises familiares e existenciais de cada personagem, com um toque de humor muito peculiar, especialmente na dupla pai e filho que foram as partes que mais me conquistaram.


Por outro lado, quando peguei no livro achava que ia ler sobre um novo caso de Pilar Benamor, completando assim a trilogia, mas vê-se logo que não fui pesquisar sobre o livro e o processo de escrita, caso contrário teria percebido que um acidente pessoal fez nascer a personagem de Flores Baltazar que com os (seus) dias contados virou o livro numa prequela 😉 e em muito boa hora.

"Ela estacou. À luz do candeeiro de rua, naquele princípio de noite fria, vi uma mulher diferente daquela com quem me casara - alguém que, por via da relação com um homem como eu, se havia tornado, ela própria, uma dependente. Alguém que existia em função de apagar os fogos que eu ateava - vezes e vezes sem conta, repetidamente -, devido à minha personalidade ou às características mais empedernidas do meu carácter, que eu gostava de apelidar de criativo. Eu intuía que esse tempo estava a chegar ao fim; só não sabia ainda como.”

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

«O nome que a cidade esqueceu» de João Tordo – Opinião

“Para quem isto que escrevo, então?
Resposta: Para ti, mas não para ti:
para mim; para ti em mim.”
J. M. COETZEE, A Idade do Ferro

Pelas palavras de Coetzee entramos na vida de Natacha e George B. e desde cedo sabemos que muito dos outros ficou dentro deles. Em parte, um muito que ficou por resolver e com quem fazer as pazes.

Embora as circunstâncias sejam muito distintas, fruto daquilo que não se controla; ambos estão exilados, não obstante serem livres. As suas acções estão presas ao passado, ao medo, à solidão, mas essencialmente ao medo de ter medo, de se magoarem ainda mais, de não saberem com quem contar.

Assim, o livro divide-se porque os dois caminharão em sentidos opostos, George B. não vai superar o seu isolamento, mas Natacha vai florir e abrir-se ao mundo e às pessoas. No meio, conheceremos as histórias de cada um deles e de quem ou o quê, os moldou a serem satélites. E pensamos...

De quantos satélites se compõe a nossa história? Quantos orbitam perdidos no espaço escuro e imenso que são as memórias e o passado? Quantos se tornam lixo espacial? Ou especial?
E o que é que os satélites têm a ver com a história? Muito! Os satélites e o espaço. O vazio!

domingo, 11 de agosto de 2024

Amy e Isabelle - Opinião - Opinião

“A vida, delicada como um tecido, podia ser rasgada pelos golpes caprichosos de um momento aleatório e egoísta.”

E a frase não podia ser mais verdadeira e transversal à história das mulheres que encontramos nos livros de Strout e mesmo este sendo o seu primeiro romance já se sente a provocação e o confronto geracional, especialmente no feminino e que povoará a relação mãe-filha em Barton ou até mesmo a forte e acutilante Kitteridge.

Em «Amy e Isabelle» uma insegurança disfarçada e uma certa indiferença, caracterizam filha e mãe, respectivamente e a conturbada relação entre ambas que de forma tentacular ultrapassa as fronteiras do doméstico, seja por estarem integradas numa comunidade próxima, seja porque a dada altura trabalham juntas. Ainda assim, a hostilidade aumenta entre as duas, depois do ambiente ficar envolto em mistério e segredos, transformando a atitude de cada uma, embora o início da idade adulta faça mais estragos que qualquer outro evento.

“O verdadeiro problema, claro, era que ela e a mãe passavam o dia todo juntas. Amy tinha a sensação de que as ligava uma linha negra, uma linha não maior do que um risco feito a lápis, talvez, mas, ainda assim, uma linha omnipresente.”

E essa linha nunca se apaga em todo o livro, tal como uma outra que une as mulheres do escritório, reforçando que quando é preciso são aliadas umas das outras, mostrando uma análise muito interessante por parte de Strout sobre os ambientes por onde o mulherio prolifera.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

«Estela sem deus» de Jeferson Tenório :: Opinião


"Escutei e concordei com tudo. Não estava disposta a discutir nada com ele. Porque eu estava me aproximando do lado esquerdo do meu coração, então era preciso calar, calar até que o momento exato surgisse, até que meu grito pudesse sair puro e vulcânico, livre das amarras. Livre do peso dos homens.”
É curioso voltar a uma leitura através das frases a que se dá destaque, juntamente com um regresso ao livro anterior por aquilo que se escreveu, e ver as semelhanças que não foram sentidas aquando da leitura, no entanto, não é possível ignorá-las. A procura por um pai e a aspereza das relações entre as pessoas, juntamente com a racialização, a fé, a família, a educação (e os livros!) e o abandono, deixam feridas abertas em cada personagem e ESTELA não é excepção.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

«Sono» de Nick Littlehales :: Opinião

Ler «Sono» de Nick Littlehales é aprender que dormir 8h é um mito e só contribuí para a nossa ansiedade e é ficar desperto para termos como power nap, jetlag social, lâmpadas solares, dietas de luz, colchões e roupa de cama equivalente a nuvens, equilíbrio digital, a abordagem R90 e a controversa técnica de mouth taping.

"Ir para a cama quando não estamos cansados ou preparados para o fazer apenas causará problemas, e sentirmo-nos tensos por causa disso a meio da noite não nos ajudará a voltar a adormecer. Assim que começa a preocupação, libertam-se as hormonas do stress, como a adrenalina e o cortisol, e ficamos ainda mais alerta."

Mantendo essa ideia como a principal, já que o mito das 8h de sono é um "tamanho único" que claramente não serve a todos e juntando a organização do sono e do dia em períodos de 90m (Abordagem R90), sem esquecer que precisa tanto combater o jetlag social como reduzir o excesso de cafeína = «ser uma sombra nervosa de si próprio e claro» – e reduzir o nº de horas de uso de equipamentos, essencialmente o pc/tablet e o telemóvel.

Manter esta dieta de aparelhos e apimentar a vida com mais caminhadas, desporto em geral, música que estimule as ondas delta (para de noite) e as ondas beta (de dia!) e estipular períodos de 90m para organizar o dia-a-dia será o essencial para melhorar e reprogramar o cérebro para tempos de sono de qualidade.


Na Abordagem R90 há princípios básicos:
- acordar pelo menos 90m antes da hora de estar apto para o trabalho ou no trabalho;
- é importante manter sempre horário de acordar, mesmo quando não precisa, para não dar informações erradas ao organismo;
- organizar ciclos de 90m para estruturar o seu dia, seja com actividades, períodos de sono, de lazer;
- reduzir ou anular dispositivos antes de dormir (dieta de luz)

domingo, 7 de julho de 2024

«Terrinhas» de Catarina Gomes - Opinião

“Quer queira quer não, nas minhas memórias mais antigas parece que descubro batatas. Sempre me foram íntimas. Na casa onde eu cresci dava a impressão de que até tinham direitos”.

É entre batatas, memórias, medos e sacrifícios, e segredos, que a vida de Cláudia se estruturou. Uma vida que a partir de certa idade repele a terrinha e as perguntas que ficaram por fazer. As heranças e as coisas das quais se sabe pouco, como sempre soube pouco sobre batatas. Esse enigma, essa obsessão… onde residia o segredo que tornava as batatas da terrinha melhores que quaisquer outras?

“Durante meses a fio comprei batatas nos mais variados sítios, de mercearias a minimercados, supermercados e hipermercados. Só precisava de uma de cada vez. (…)
Pegava na batata solitária recém-comprada, numa das sobreviventes, e cozia-as às duas. Não lhes saboreava diferenças. E isso provocava em mim emoções diversas. A ausência do sabor distintivo fazia-me sentir cada vez mais próxima do dia em que as conseguiria mandar a todas embora, da libertação. Ao mesmo tempo, entristecia-me a ideia de que, ao que tudo indicava, as batatas que restaram não tinham nada de especial, que afinal eram iguais às que se podiam comprar em qualquer loja de esquina por tuta-e-meia.
Por medo de ver essa constatação a aproximar-se, persisti. Uma vez, estava a dar na televisão um programa sobre vinhos. Resolvi imitar o que vi os enólogos fazer: deixava os pedaços de batata tardarem-se-me longamente no palato, até se desfazerem.”