terça-feira, 28 de novembro de 2023

"Baiôa sem data para morrer" de Rui Couceiro - Opinião

 

Chegamos a Gorda e Feia pela mão hábil e minuciosa de Rui Couceiro que encontrou na voz de um narrador anónimo, o veículo ideal para fazer chegar aos leitores as peripécias de uma aldeia onde de repente (parece, mas não é) todos começaram a morrer. Mas este professor-narrador não conta só a história dos que vão morrendo, conta também a história de uma região, de uma família – a sua – e de uma comunidade que também se fez família pela proximidade que o isolamento traz. E nessa família aceitaram este narrador-forasteiro que com a calma a que o calor obriga e a imensidão dos campos inspira, se fez menos pacóvio urbano e mais destemido perante a fantasmagoria rural.

Cúmplice nessa transformação estava Baiôa. Joaquim Baiôa, um homem enrugado, quase tanto como uma uva ao sol. Um homem que vivia na inquietação de cuidar, limpar, edificar, lutar… era a sua luta por permanecer, por não deixar morrer a aldeia onde sempre tinha vivido.

“Baiôa vivia consciente de que a inquietação edificava, sentia-se sabedor de que nada de mais humano existia do que o desassossego. (…) Vivia em agonia, sentindo o desespero do fim através das mortes dos outros, torturas permanentes para ele que ficava e não sabia por quanto tempo.”

Não era apenas Baiôa que viva em desassossego, também o narrador se sentia em desesperos, alguns até os desconhecia.

“Em certa medida (…) valeu-me o rio. (…) O rio, que em rigor é um ribeiro, será nestas páginas sempre rio, por absoluto merecimento de tal promoção: não só é entidade viva em terra de mortos (…) No rio, via o meu reflexo parado sobre as minhas ânsias correntes, duas partes de mim que se separavam uma da outra e das reflexões deixadas nas margens.”

Não são só as reflexões que o narrador deixa nas margens. Também lá vai ficando o telemóvel e as incontornáveis redes sociais que tanto alimentavam os seus dias e as suas insónias, coisa crónica que o apanhava constantemente. Ou melhor dizendo, coisa que lhe abalroava de todo as ideias e as certezas, de tal forma que até ouvia a mãe: “Nós não somos nada, filho,”

É entre estes cenários de tormentos e mesmo fustigados pelo calor que Baiôa e o narrador vão reconstruindo casas na aldeia enquanto compõem as abordagens oficiais que regem os trabalhos no Observatório da Morte.

«Baiôa sem data para morrer» é isso mesmo, um peculiar observatório das mortes em Gorda e Feia, uma incrível sucessão de acontecimentos com a qual o narrador se viu a braços, como quem toma notas naqueles papeizinhos amarelos com a banda autocolante a ficar-lhe presa em todos os seus movimentos. Até que, atulhado neles, se decide a escrever este livro, edificando assim uma homenagem às memórias da ruralidade que atravessa todos nós.

sábado, 11 de novembro de 2023

"O último acto em Lisboa" de Robert Wilson - Opinião


Robert Wilson converteu o género policial num épico, no entanto, tenho a sensação que enfiou o Rossio na rua da Betesga e expressão mais portuguesa não há para aquilo que faz ao longo de mais de 500 páginas. Há uma pesquisa imensurável e Wilson precisou cozê-la toda com ponto bem apertadinho para dar ao leitor uma viagem pela História recente de Portugal, sem esquecer detalhes de todo o género, no entanto, o diabo está nos detalhes. São demasiados. Nomes, referências, ruas, praças, patentes, expressões…. Tanto quantas as incontáveis personagens, mas… lá está, navegamos dos idos de 1990 e troca o passo para uma incursão à Alemanha nazi, para logo a seguir atravessarmos a serrania raiana portuguesa e entrarmos nos meandros do volfrâmio, cruzando a ruralidade inóspita com a ostentação da metrópole e as suas lides de espiões e quando o leitor está quase confortável com o que lê, mais um salto cronológico e a conspiração continua décadas atrás ou à frente e tanto estamos entre oficiais das SS como entre inspectores que tomam uma bica e um pastel e nata enquanto discutem trivialidades de um Portugal à espreita da viragem do século.

É intenso, é complexo, ganha ritmo, mas perde-o logo a seguir com a constante mudança nas personagens e com os infinitos detalhes. Os mal-afamados detalhes ;() Sem esquecer os que se disfarçam, mudam de rosto, de nome, de local… mal sabíamos nós que este «Último acto em Lisboa» era uma saga, embora o autor nos avise, disfarçadamente, pois também a linguagem usada é exímia e mestre do disfarce.

“Cheguei ao topo das gastas escadas de madeira e por instante senti-me como um homem a quem tivessem mandado carregar sozinho um piano.”

E lá vamos nós, empurrando o piano ou como Felsen, “(…) pisando e repisando o mesmo terreno , de tal modo que, se os seus pensamentos fossem passos, teria cavado uma trincheira circular até aos ombros.”

E a mestria do autor é essa, ele pisa e repisar, circularmente, cozendo com habilidade cirúrgica, uma conspiração que atravessa décadas e une as histórias que ao longo de muitas páginas teimam (assim parece) em não se cruzar. Sem esquecer, como estrangeiro que é, de ler, interpretar e escrever com humor, traços tão portugueses, que só nós português parecemos não ver, mas assim descritos tornam-se tão evidentes que não podemos fazer mais nada a não ser: rir!

“- A única coisa que os portugueses põem atrás das costas é a cadeira à hora das refeições. Vivemos com a história como se tudo continuasse a acontecer. Há gente nesta terra que ainda espera que D. Sebastião o Encoberto volte ao fim de quatrocentos anos para nos levar a cumprir Portugal…”

Entre factos muitos distintos, histórias e História, há ainda lugar para humor, roteiro turístico, crimes com investigações à portuguesa, especulações sobre heranças ancestrais, politiquices intemporais e um ou outro comentário romântico de pacotilha com pendor para o drama, ainda assim, a verdade não se escondeu debaixo do colchão como as notas de alguns, firmando a ideia “é tudo uma questão de negócios. O dinheiro não tem moral” ou a “impunidade dos tubarões”.



quinta-feira, 26 de outubro de 2023

«A lua de Joana» e «O guarda da praia» 30 anos depois 😉

 


O desafio de reler «A lua de Joana» foi lançado pela metade mais colorida deste blog, a ElsaR e em boa hora eu aderi. Não sei quem mais o fez, mas se nos lêem, não deixem de comentar, partilhando sensações.
São perto de 30 anos que separam estas leituras. 30!? Ah pois é. E as sensações desta leituras deveriam ser uma entrada de diário que eu pudesse comparar com outra, escrita pelo meu eu de doze anos. Mas não existe e recorrendo apenas à memória pouco por cá existe sobre ambas estas narrativa, a não ser pequenos detalhes: o baloiço em forma de lua, algumas sensações sobre a escola e a paixão, essa grande paixão que é a praia. Presença constante na minha vida. Tal como a leitura.

A primeira surpresa foi a ilustração com que abre o livro, foi uma surpresa, não me recordava nada dela, mas acho bem capaz, se ainda conservasse o meu exemplar, de a encontrar pintada. 

Ilustração de frontispício: Cristina Malaquias

Relendo este livro-fenómeno, por ser até hoje vendido e debatido nas escolas, reencontro acima de tudo a mística associada à escrita diarística e não deixa de ser curioso que nos últimos tempos tenha lido vários livros dentro deste registo, mas seja algo que não mantenha, nem procure ler. Mas tem calhado. E algo muito curioso é a forma como certas entradas parecem ser escritas pela minha mão, pelo menos algumas linhas, seja aqui neste registo mais adolescente, em «Dano e Virtude» de Ivone Mendes da Silva ou nas linhas atormentadas, ácidas e até repetitivas de «O regresso dos andorinhões» de Aramburu. O que é certo é que um diário encerra a eterna questão: a da incompreensão. E essas são as melhores passagens.


É precisamente nessa incompreensão que começa «A lua de Joana».
Joana não compreende o que aconteceu a Marta, o que a levou a tal desfecho, mas pior, não compreende como levar a vida adiante sem a sua amiga, a sua confidente, aquela que a ajudava a descodificar o mundo à volta delas. O mundo convulso e desafiante que é o da adolescência, os desafios de saber o que estudar, a dificuldade em compreender a família, os amigos... e o papel num todo no qual não se reconhecem. Por isso, Joana continua a escrever a Marta, mesmo a amiga estando morta. Escreve em busca de resposta, despejando as mágoas no papel e enquanto o faz revela a solidão e o desamparo que sente e nós, hoje 30 anos depois, vemos tantas coisas mais que não veríamos com doze ou treze anos. Há uma desconexão brutal entre os elementos estereotipados desta família, falha a comunicação e falha logo numa fase crucial, a do luto e a solidão. Joana não tem como nem como quem tapar o buraco que lhe comprime o peito e as ideias. Ou até tem, mas por pouco tempo e esse segundo luto define um caminho que já se adivinhava no horizonte.

Sem dúvida que «A lua de Joana» é um livro que merece ser lido e relido. É um objecto de estudo e de debate e consoante as idades, as sensações e preocupações mudam e isso ainda o melhora mais, por ser capaz de se transformar juntamente com os seus leitores.


Com «O guarda da praia» as sensações são diferentes. As preocupações também. Embora os temas sejam igualmente importantes, pois existe um alerta para a preservação e respeito pelo meio ambiente e também uma relação, até certa parte nebulosa, entre uma mulher e uma criança, recriando um pouco o mito do menino selvagem, sem esquecer questões de abandono familiar e a maternidade.

Gostaria muito, talvez até mais, de ter a tal entrada no meu diário e reler as ideias sobre esta história, lembro-me de ter gostado muito, de ter escrito até qualquer coisa inspirada por esta praia, mas a memória está carregada disso: efeitos-dos-livros 😉




quinta-feira, 5 de outubro de 2023

«O homem mais feliz no mundo» de Eddie Jaku - Opinião

Foi com enorme gosto e interesse que conheci Eddie Jaku, embora tenha sido uma leitura entusiasmante, foi igualmente uma leitura sofrida, mas quem sou eu para falar de sofrimento perante um relato destes!

E por isso mesmo a melhor mensagem que se retira desta leitura só pode ser o mantra que acompanha esta biografia.

"Quem partilha as dores, sofre metade.
Quem partilha o prazer, desfruta o dobro."

Claro que são palavras bonitas que pretendem olhar para trás com o pendor do perdão e da superação de anos e anos de tormentas com memórias e fantasmas, mas também isso Eddie Jaku revela quando nos diz até que ponto foi infeliz e atormentado e a partir de que ponto senti uma emoção sem igual que lhe permitiu abraçar o futuro com outra postura. Ainda assim, essa alegria do nascimento do filho teve sempre uma sombra: quando e quanto devia revelar da sua história pessoal como vítima do Holocausto?

"Foi uma emoção muito forte. Desatei a chorar. A minha irmã nem quis olhar para a caixa, tão perturbada se sentiu. É impossível esquecermos a imensidão da dor que carregamos e do sofrimento que sufoca o nosso subconsciente, até nos confrontarmos com provas de tudo o que perdemos."

Essa revelação - um choque para muitos - foi outra parte da superação que o levou a acreditar ser o homem mais feliz do mundo e mais uma vez o seu mantra fazia sentido. É preciso partilhar, é preciso sofrer e sorrir em comunhão com os outros, quer sejam eles outros sobreviventes, a sua própria família ou estranhos espalhados pelo mundo. Eddie acreditou sempre que de cada vez que partilhou a sua história fez um amigo. Que em cada leitor que leu o seu livro fez mais um amigo. E que cada amigo partilhará a sua história e que é dessa partilha que nasce a empatia que nos permite tomar parte naquilo que é correcto.  

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

«História do Repouso» de Alain Corbin - Opinião


«Toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto.»

Quem o disse foi Pascal, mas Corbin vai mais além, dizendo, logo ao abrir deste pequeno tratado sobre a evolução do conceito de repouso: «É nos momentos de repouso que sabemos no que estamos a pensar.» Porém, arrisco a dizer, após uma leitura atenta, mas em repouso (daquele lânguido de quem se espraia ao sol), o que esta História do Repouso nos deixa a pensar é que a História da Humanidade se cruza, ou se faz, pela da Religião e a da Igreja, a do Dinheiro e da Industria e muito das Modas e Tendências, existindo uma circularidade daquilo que é esperado do ser humano, assim sendo, que espaço lhe sobra para saber no que está a pensar?

Ficamos inclusive a indagar se mesmo quando há espaço para esse encontro com o Eu, se rapidamente não se procuram outras formas de repouso. E a organização secular da sociedade tem variado a oferta. Nem que seja com a missa, a oração, o trabalho ou a demonização da inutilidade, já que repouso teremos muito quando entregarmos a alma ao criador.

E embora as ideias de repouso e descanso dominical tenham herdado muito do advento do cristianismo e pelo qual o autor deambula bastante, há a evolução do conceito de repouso associado ao trabalho e à consequente alteração do mesmo com a revolução industrial, sem esquecer, conforme os séculos foram passando, e consoante os pensadores de cada época, os estados de alma e os temperamentos também ditarão tendências sobre o era o repouso e como se deveria praticá-lo, até entrarmos nas prescrições médicas do repouso como curativo.

“Quando De Maistre descreve os prazeres do confinamento, pensamos logo nos pensamentos de Pascal sobre os benefícios do repouso no quarto. No fim do século XVIII, a teoria dos temperamentos, que associa a circulação dos humores aos traços de carácter, já entrara em declínio; porém, no caso de Xavier de Maistre, podemos sem dúvida, incluí-lo na categoria dos indivíduos de temperamento linfático (…) era um apreciador das delícias da «flânerie» (…) era um entusiasta da «viagem imóvel» e sentia fascínio por espaços fechados, considerados um «refúgio eleito e estável», que convidavam a um repouso longe da vã agitação.”

O repouso como refúgio ou o encontrar refúgio para repousar é mais tarde a ideia base dos sanatórios, fossem para estados de melancolia e para os valetudinários ou outros tipo de inválidos, todos eles “vitimas de um desregulamento geral da saúde”, mais tarde como famigerada cura para a tuberculose e enquanto Corbin vai relatando e referenciando como todas estas passagens do tempo alteraram a História do Repouso, o leitor está sedento do capítulo sobre aquilo que está a fazer no preciso momento da leitura – estatelado ao sol com o livro em jeito de mini-sombrinha – até que se depara com o termo vilegiatura, pára tudo, baixa o livro, olha o mar e apercebe-se que está em vilegiatura, termo pelos vistos utilizado desde o século XVII, isso mesmo dezassete ;) e continua a ler: “(…) deve a vilegiatura marítima ser incluída numa história do repouso? É lícito afirmar que esta novidade alterou, de um dia para o outro, o conceito de repouso?" e entramos um pouco na Anatomia da Melancolia, Robert Burton que nos fica já na lista.

E seguimos com a leitura e percebemos que a prescrição para a vilegiatura pressuponha “estratégias de repouso em sintonia” (e busca) com a quietude, a introspecção e as sensações agradáveis e apaziguadoras do contacto com a Natureza. Sem dúvida muito diferente do que a maioria pratica hoje em dia, ou considera repouso e férias.

Ostentar o repouso e sentir-se contente (e tranquilo) com essa prática, alimentar uma certa inutilidade e preguiça e exigir o direito ao ócio tem sido cada vez mais estudado e alvo de uma atenção redobrada, ganhando o estatuto de necessidade básica, estudos esses em paralelo com outros sobre doenças, criminalidade, suicídio, produtividade, entre tantas outras vertentes da vida moderna, especialmente aquela que faz do repouso (ou lazer) outra tarefa, com horários, tensões e consumo, transformando mais uma vez o conceito de repouso: Porque deixámos de descansar, se descansar faz parte da jornada?

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

«O Relatório de Brodeck» de Philippe Claudel :: Opinião

«O Relatório de Brodeck» é um inventário da tristeza, da desumanização, da traição, do medo e da solidão, mas é também um inventário da beleza, da esperança, da luta e da crença na palavra. Palavra após palavra, pouco a pouco, o nada ganha conteúdo, dimensão, profundidade, memória. O Relatório é isso mesmo, um compêndio de pequenos nadas que compõem memórias fortíssimas (muitas vezes duras de serem lidas), recordações que não se podem perder, porque cada homem é uma soma de pequenos nadas que justificam tudo!

“Cada homem encontrava-se curvado sobre o seu próprio silêncio, mesmo havendo quase quarenta pessoas no albergue. Estávamos comprimidos como hastes de salgueiro num feixe, asfixiando, respirando o cheiro uns dos outros, os hálitos, os pés, a viscosidade ácida do suor, da, da roupa húmida, da lã velha e do algodão., sujos da poeira, da floresta, do estrume, da palha, do vinho e da cerveja, sobretudo do vinho. O que não significa que estivessem todos embriagados, não, seria demasiado fácil acusar a embriaguez. Apagar-se iam de uma penada as atrocidades. Demasiado simples. Mesmo, muito simples. Vou tentar não abreviar o que é muito difícil e complexo. Vou tentar. Não prometo que consiga.”

E não conseguiu abreviar porque lhe vieram à cabeça, à boca, às noites e à palavra, os pesadelos a que as atrocidades do campo de concentração o condenaram. Voltou tudo, envolto naqueles cheiros e sensações, naquelas ordens que o sentenciaram perante a urgência e a obrigação de relatar. Relatar para ilibar pela palavra. Pela mesma palavra com que falava para si mesmo, descrevendo a beleza, igualmente esmagadora e aprisionante, da aldeia e a Natureza envolvente e só por aí entram alguns raios de luz na narrativa, pois o O Relatório, esse, é pior que o Inverno da sua aldeia.

“No Inverno que, na nossa Terra, é longo como séculos espetados uns atrás dos outros, numa grande espada e durante o qual, à nossa volta, a imensidão do Vale, asfixiado pelas florestas, desenha uma extravagante. Porta de prisão.”

Nos dias seguintes ao Ereigniës (palavra em dialecto usada para descrever a noite do evento) nada mais será quente para além dos ânimos da população, as braseiras ateadas por boatos e as coxas de Boulla, que é talvez das poucas vezes que nos faz rir, embora todos os habitantes sejam peculiarmente descritos, como o velho Diodème que Brodeck achava digno das epopeias e desconfiava ter sido enviado pelos deuses, mas com que intuito?

Entre questões sem resposta e memórias que caem, Brodeck reaviva o medo, sempre o medo. O medo é personagem deste romance, juntamente com o mal.

“Sinto que não fui feito para esta vida. O que eu quero dizer é que a minha vida transborda por todos os lados, que não foi talhada para um homem como eu, que se enche de muitas coisas, muitos acontecimentos, muitas misérias, muitas falhas. Talvez a culpa seja minha? Talvez eu não seja capaz de me revelar um homem? De pegar ou largar, de seleccionar. Ou talvez a culpa seja deste século em que vivo, e que é uma espécie de grande funil no qual se vasa a sobra dos dias, tudo o que corta, esfola, esmaga e retalha. Recordo o meu medo, como se o medo, doravante, fosse uma peça do meu vestuário. Uma peça que, de resto, nunca consegui despir, muito pelo contrário, e que me comprime como se me encolhesse de semana em semana. O mais estranho é que, quando eu estava no campo de concentração, quando me chamava Cão, Brodeck, não tinha medo. No campo de concentração, o medo não existia. Eu estava para lá do medo. Porque o medo ainda pertence à vida.”

Brodeck fez parte dessa marcha de cadáveres, regressou de onde não se regressa e afirma várias vezes que a morte não é difícil, difícil é tentar sobreviver perante a constante ameaça de morte, a ideia, o foco, a concentração numa única sensação, a de morrer. E o ser humano não foi talhado para viver assim. Por isso o Inverno lhe era tão doloroso, memórias como mancheias de neve entre a roupa e a pela. Um frio cortante que queima.

O Relatório vai continuando e pouco é revelado sobre o seu verdadeiro alvo, o Outro, o Estrangeiro, O Estranho, O Forasteiro, ou seja, O Anderer, o homem que foi morto pela população cega de desconfiança, porque o desconhecido é uma ameaça, mas uma multidão é uma ameaça maior, especialmente quando confrontada com o boato, a desconfiança ou o que é puro. Como a pureza dos animais fortemente atacados e usados, embora Brodeck avance e recue na história e nos faça, ora detestar ora compreender cada uma daquelas pessoas.

O que é certo, é que a guerra devastou e os seus horrores não têm fronteira, não precisam de país ou idioma, os traumas têm extensões mais altas que as montanhas e efeitos mais desconhecidos que as entranhas da terra, sempre adensados pelo isolamento e a escuridão

“Releio as páginas já escritas da minha narrativa, apercebo-me de que sigo pelas palavras como um animal acossado, que corre veloz, aos ziguezagues, procura despistar os cães e os caçadores lançados em sua perseguição. Há de tudo nesta confusão. Ostento a minha vida. Escrever alivia-me o coração e o ventre.”

Já o leitor não segue nem sai de coração ou ventre mais aliviado, antes sim num novelo, mesmo quando Brodeck cruza as suas palavras com as de Nösel e nos diz, à laia de dúvida ou de esperança que «o homem é um animal que recomeça sempre», não obstante, afirma que o autor nunca respondeu sobre o que é que o homem recomeça e o acuse de ter esquecido o verdadeiro mundo por se ter dedicado aos livros. Mas também ele, Brodeck se dedicou aos livros, desde cedo pela mão do padre Peiper.

“Alguns devorarão, outros, esventraram-nos, violaram-nos, conspurcaram-nos. E o que é justo nem sempre triunfou sobre o que é sujo.

O que me obrigou, como milhares de outros homens, a carregar uma cruz que não escolhera, a sofrer um calvário que não fora feito para os meus ombros e que não me dizia respeito?

Quem decidiu, então, remexer a minha obscura existência, desenterrar a minha parca tranquilidade, o meu anonimato cinzento, para me lançar como uma bola tresloucada e minúscula para o meio de um imenso jogo? Deus? Mas então, se Ele existe, se Ele existe realmente, que se esconda. Que erga as mãos à cabeça e a curve. Talvez, como dantes nos ensinava Peiper, muitos homens não sejam dignos Dele, mas hoje também sei que Ele não é digno da maior parte dos homens, e que se a criatura pôde gerar o horror, foi unicamente porque o seu criador lhe forneceu a receita.”

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

"A piscina" de Libby Page :: Opinião


Sou uma amante de praia e de dias que envolvem mergulhos e o som do mar como única companhia. Adoro o efeito da água salgada no cabelo, a areia no pé, os desenhos que ficam de nos deitarmos na areia e o terminar de qualquer dia é sempre melhor se for com uma caminhada à beira-mar, maré bem vazia (e a praia também, de preferência) e o sol a cair e transformar tudo aquilo em que toca apenas já por breves momentos. Ler à beira-mar, de cadeirinha enterrada na areia molhada… Enfim, podia continuar a descrever cenários que envolvem a praia, porque a piscina, sendo pública e municipal e tem regras, mas mesmo assim, é um espaço onde cada vez mais recorro para recarregar baterias e nivelar os humores 😊

E o mesmo se passou com este livro «A PISCINA» de Libby Page, que em boa hora as minhas queridas Rodistas me chamaram à atenção para ele, por isso, de todas as vezes que o abria foi como se desse um mergulho na minha piscina, aonde regressei em plena pandemia e por lá me tenho mantido, seja para treinar ou relaxar. No meu pote com papelinhos coloridos, que são notas de gratidão, de um ano para os outros, reencontro inúmeros agradecimentos por mais um mergulho e a água fria que tantas vezes (ou quase sempre!) é curativa.

Contudo, «A Piscina» não é só para os fãs de mergulhos em águas frias, lycras justas e tocas apertadíssimas que comprimem o cabelo e as ideias 😉 são também para quem queira uma história leve, que ainda assim toca em temas sensíveis, como a perda, o luto, a ansiedade ou a falta de confiança em nós mesmos e sensibiliza para a importância de equipamentos públicos que criem espaços de convívio e partilha e assim se fomente um maior sentimento de comunidade. E pelo meio, conhecemos Rosemary, numa idade em que já só se flutua, ou dentro de água ou nas memórias e é aí que a conhecemos jovem e percebemos o quanto uma simples piscina acompanhou e definiu a sua vida familiar, como pode agora definir a de kate.

“Chega sempre com antecedência, mas só se sente mesmo confortável quando a luz diminui e, como ela, todos se perdem no filme. Estica o pescoço para o ecrã e vê a comédia romântica, o thriller, o filme de espionagem escolhido este mês., chorando ou rindo em coro com os outros espectadores. A emoção flui pela sala como uma onda. quando assiste a um filme, não está sozinha, faz parte de algo maior, um rosto sem nome numa grande plateia de rostos sem nome.”

Esta massa humana e tantas vezes incógnita no seu todo, também pode estar na piscina, naquela orquestra de barbatanas, pás, mãos e pés nus, que dialogam com os guinchos das crianças, o chapinhar dos brinquedos que flutuam, as gargalhadas a ecoar maia alto que a música das aulas, um burburinho incessante que apenas sossega a cada mergulho quando a água nos devolve a um silêncio desfocado pela respiração tantas vezes sustida em esforço.