sexta-feira, 7 de junho de 2024

«O que é o quê, a história de Valentino Achak Deng» de David Eggers - Opinião


"(...) o mundo que conheci não é muito diferente do retratado nestas páginas. (...) sabíamos que as nossas histórias tinham de ser bem contadas (...) nenhuma privação ou perda era insignificante."

As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.

"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."

terça-feira, 4 de junho de 2024

«Cem anos de perdão» de João Tordo :: Opinião

Se «Águas Passadas» não movem moinhos, ladrão que rouba ladrão tem «Cem anos de perdão». E estivessem certos os provérbios, o ritmo dos thrillers de João Tordo teriam por certo outro tom e embora este «Cem anos de Perdão» ainda comece com algum humor, rapidamente o cenário do crime anula qualquer risada que pudéssemos dar com um dupla de polícias trôpegos, no meio de uma ilha remota algures ao largo de Inglaterra. Aliás, Cícero está preso e o cenário na prisão está pejado de predadores e Pilar sobrevive na fria Helsínquia, rodeada de homens feios e pesadelos que adensam os seus traumas.

"(...) os pesadelos persistiam. O clarão. A memória dos dias no hospital. Os ossos do rosto desfeitos, os dentes perdidos. A recuperação lenta, morosa. Alguém lhe dissera que uma pessoa precisava de oito anos para resolver um trauma, se fosse assumido e tratado. Quanto tempo demoraria daquela maneira - oitenta anos?
(...)
O desejo, o sexo, o jogo do gato e do rato, a adrenalina que, temporariamente, lhe mitigava a ansiedade. O regresso, uma e outra vez, ao mesmo ritual perverso. Quando desligou, lembrou-se das <<características», repetidamente lidas nas reuniões: Temendo o abandono e a solidão, ficamos e regressa- mos a relações dolorosas e destrutivas, escondendo a nossa dependência de nós e dos outros, cada vez mais isolados e alienados dos amigos, das pessoas que amamos, de nós próprios, de Deus."

Os traumas estão lá, o grupo de apoio já não. Pilar isolou-se e Cícero está longe. Deus pode estar no meio deles, mas ela ainda não sabe, mesmo que os sonhos já lho digam: "Abre os olhos, disse Pilar a si própria. (...) Abre os olhos, abre-os, e então os olhos abriram-se com a violência de uma rolha arrancada a uma garrafa, e ela viu-o."

Não Deus! Mas um dos irmãos Loar ainda sem saber quem eles eram. Então aí, quem já não tem sossego é o leitor para ver como João Tordo enovela um informador engaiolado e as congeminações das tribos dentro da prisão, os Filhos de Dismas e a fuga de Pilar em direcção ao centro do furacão. E claro, novamente personagens em busca do sentido da vida, a luta pela justiça a braços com a emotividade, onde a razão e a lógica não explicam tudo.

"A superstição, na sua raiz, é um medo excessivo dos deuses. O receio de uma profecia. Em latim, superstitio é algo que sobrou, que ficou de fora. Fora de quê? Da limitadíssima capacidade humana de compreender; como se os deuses tives- sem deixado, aqui e ali, zonas de sombra que atemorizam o humano, propositadamente zombando da nossa finita razão."

É muito interessante a questão religiosa aqui exposta e a forma subtil como a pesquisa surge como parte do enredo, fazendo ligação aos livros que Cícero já mencionara no primeiro livro e aos pecados humanos que são preocupações transversais aos personagens criados pelo autor.

"Sabes qual é a prova de que estamos numa terra santa, Noah? Toda a gente tem medo dela."

Noah é um elemento chave neste enredo, um pouco como o Capitão Garcia. Homens que Pilar deixa entrar no seu círculo. Desafiam-na, admiram-na, temem por ela, mas ainda assim ela insurge-se e resvala ainda mais para o perigo. Há sempre uma dependência que é explorada na perspectiva das relações tóxicas e é isso que dá outra densidade à ex-subcomissária e á sua forma enviesada de terapia.

Seja nesses detalhes sobre os personagens, seja nos temas que compõem os enredos, ambos os livros dialogam muito bem entre si, conseguindo sempre a proeza de ainda dialogar com livros e filmes e por vezes até aspectos que encaixam nas vidas dos leitores, por isso, que o lançamento do próximo tenha os dias contados 😉

domingo, 26 de maio de 2024

«Águas passadas» - de João tordo :: Opinião

"Fui eu quem a descobriu, à afogada, no meu passeio matinal pela arriba. E a culpa nasce precisamente daí - de o meu temperamento melancólico se alimentar positivamente da morbidez; de o sofrimento ser o seu húmus mais fértil. Ao encontrar o cadáver, a minha vida ganhou novo alento.
Vergonhosamente, desabrochei."

É com esta descrição dele mesmo que Cícero se apresenta. Parte do alento que tinha perdido, sabemos em breve, deve-se à falta que Simples lhe faz, o cão que morreu faz pouco tempo. Mas a maior parte do seu sofrimento data de anos, muito antes de se ter tornado um eremita à beira da falésia na escarpada Azóia. E logo aí conquistou a minha atenção. Eu vi-me, contemplativa como Cícero e acompanhada de um cão, nos trilhos que serpenteiam o precipício com vista para o Atlântico. 

E claro, ter sabido que a série está a ser adaptada para série televisiva, colocou a leitura noutro nível. Eu ia lendo e fazendo o meu próprio casting. 

Quando o corpo de Charlie é descoberto, ficamos a conhecer a Subcomissária Pilar Benamor, a quem é pedido: "caso decida ir buscar a pobre rapariga ao Inferno, por favor, não olhe para trás no regresso.". Evocando o mito de Orfeu, o legista parece adivinhar os horrores que aí irão, embora Cícero já nos tenha dito que ele voltará a matar.

É nesta busca pelo culpado que os caminhos do eremita e da agente se enredaram, juntamente com capítulos da história da corrupção em Portugal, a forma de actuação da policia e da comunicação social, uma viagem à década de 80 e à abundância da droga em Lisboa, a literatura os mitos, a religião e as reflexões que a solidão desperta, a dependência e os grupos de apoio, o sexo, a violência e a tentativa de fugir à banalização do desprezo e da indiferença; que como vamos ver não prolifera só nas forças policiais nem é só fruto desse trabalho de prontidão para muitas coisas que mais ninguém quer ver. 

Será essa banalização uma resposta ao sigilo, ao dever de calar até as próprias emoções? Uma banalização que vem de um vazio e que só o faz crescer?
Um vazio que deixa muitas vítimas e levanta muitas questões, especialmente a do sentido da vida.

"(...) Não sei se pensava em sexo. Acho que não. O problema não é a coisa em si, mas não haver remédio. É assim que funciona o vazio, não é? Alimenta-se de coisas que não o preenchem. Como tentar enfiar triângulos num quadrado." A mulher pareceu fraquejar. "O vazio ri-se de nós."

São os fantasmas de cada personagem que lhes trazem uma profundidade que conquista o leitor. Ambos perderam pessoas de quem gostavam e capitularam perante a velha máxima: o tempo cura tudo. Não cura, só os colocou mais doentes e dependentes, por outro lado, serão essas fragilidades (e algumas insanidades) que lhes permitirão avançar, mesmo que derrotados inúmeras vezes.

"A agente passou por cá outra vez esta manhã. Usava as mesmas roupas, o cabelo apanhado, sem chapéu. Reparei como é bonita. Tem olhos cor de amêndoa, de pura tristeza, acentuada pelas pálpebras descaídas, e fala de boca fechada (os dentes quase cerrados), tive dificuldade em compreendê-la.
"Recebi o seu recado", repetiu ela.
Parecia ainda mais derrotada do que antes: uma criança que perdeu ao mesmo jogo pela centésima vez.
(...)
O distintivo do ombro continuava solto, o pedaço de tecido recusando-se a ficar no sítio. Ela sentou-se, Laércio levantou-se com uns quantos papéis na mão.
"Pareces um acidente de comboio", disse ele.
"Vai-te lixar", respondeu ela.
Os olhos pesavam-lhe como dois chumbos; a língua de cortiça, o sabor doce e amargo do sexo no palato. A culpa era uma espécie de segunda pele, tão espessa, que ela temia que fosse visível a olho nu."

Vamos conhecendo Pilar pelos homens com quem trabalha e o narrador, e vendo a sua escassa sobriedade emocional, percebendo que irá resvalar em breve, mas ainda assim consegue surpreender-nos pela forma como o faz, expondo a adição que tem: "Que era, afinal, aquele constante pisar do risco senão o secreto desejo de ser apanhada?"

Um pouco como o assassino, já que não há crimes perfeitos e todos eles se alimentam de inveja, sexo e ambição (como Tordo nos diz no seu primeiro thriller, «A noite em que o verão acabou») e neste caso soberba enorme com uma impunidade de classe, amplamente aqui muito bem explorada. 

Importa dizer que há ainda a chuva. A chuva como personagem, devido à intempérie torrencial que assolou muitas partes do país, e Lisboa em particular: "entre os dias 17 e 28 de Janeiro de 2019, na área da Grande Lisboa, choveu mais do que entre todos os dias 17 e 28 de todos os Janeiros dos setenta e sete anos anteriores." Um detalhe muito importante para dar o cenário certo a esta narrativa, "uma maré de coisas ruins" que bem podia aparecer em rodapé, nos rodapés do apocalipse se "o rio de informação não fosse tão monotemático". 

Sem esquecer que: "O Homem Lá de Cima tem um sentido de humor retorcido e, portanto, ainda que eu acredite n'Ele - foi a minha única companhia nestes anos de desterro -, tenho-Lhe uma espécie de ódio entranhado.
Uma ferrenha aversão.
Esta manhã, abandonei de vez o livro de Tolstoi. Irritou-me tanto, que fui até à ponta da arriba, onde principia a escarpa que cai sobre as águas geladas, e lancei-o com a força que me resta
Antes de me desfazer dele, li esta frase: Pela fé concluímos que, para compreender o sentido da vida, devo renunciar à minha razão, aquela mesma que exige um sentido para a vida."

Isso e os cães! Que os cães melhoram tudo.

"Por vezes, penso que os cães são ofertas de Deus; as formas possíveis de consolo para o Homem, perdido nas suas questões irrespondíveis."

E tudo se mistura e tem a tonalidade da melancolia, tão característica nas obras de João Tordo, de quem não lia nada desde o muito apreciado «Manual de sobrevivência de um escritor». E ainda bem que a vontade saiu renovada pois fui logo de seguida ler «Cem anos de Perdão».

terça-feira, 14 de maio de 2024

«Quarto de despejo» de Carolina Maria Jesus - :: Opinião

"O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade. Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetaculo. A minha porta atual- mente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatorios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas."

terça-feira, 30 de abril de 2024

«Três» de Valérie Perrin :: Opinião

Quando nos dizem que um livro tem uma personagem que é parecida connosco a curiosidade fervilha e a leitura é inevitável, certo?

Foi o que aconteceu com «Três» de Valérie Perrin e também por ser um livro que vem com banda sonora e ter música faz toda a diferença. 

Ainda assim, para as aventuras de Nina, Adrien e Étienne e claro Virginie 😉 faltaram algumas como, «She lost control», uma ou outra incontornável dos Depeche; ou então, basta colocar a masterpiece dos Nirvana, «Nevermind» e deixá-lo em repeat.

“And for this gift I feel blessed
Our little group it's always been
And always will until the end”


Ainda assim, desde o início, a minha cabeça cantarolou muitas vezes a eterna «Le Temps De L'amour» de Françoise Hardy, muito por culpa desta introdução:

“Há as lembranças, o presente e as nossas vidas anteriores que mudam de cheiro. Quando se muda de vida, muda-se de cheiro.
A infância tem o do alcatrão, de uma câmara de ar (…) do desinfetante das salas de aula, (…) da cola que faz fios nos dedos…
A adolescência tem o odor da primeira passa (…) do uísque-cola e das caves transformadas em salas de baile, (…) de restos de detergente numas calças de ganga.
(…)
E depois há o verão. O verão pertence a todas as lembranças. É intemporal. É o seu cheiro que é mais duradouro. Que se agarra às roupas. Que se busca toda a vida (…) O verão pertence a todas as idades”

É com esse cheiro a verão e tardes de piscina, cervejas ao cair do sol e as primeiras descobertas, que mergulhamos nesta história que decorrerá ao longo de mais de 30 anos e que Perrin muito bem engendrou para agarrar o leitor, a querer conhecer mais do Arsène Lupin da cábula, da miúda com os dedos negros do carvão e do miúdo franzino, “um cartucho de tinta vazio” receoso do novo ano lectivo. E é precisamente com o arrancar das aulas e os desafios que isso coloca aos miúdos que nos apaixonamos pelas peripécias dos Três Bês 😉


“- Eu só vou fazê-lo quando estiver apaixonada…
- Tu és rapariga. Não é a mesma coisa – declara Étiene.
- Porque é que não é a mesma coisa? – admira-se Adrien.
- Porque as raparigas são românticas. Sobretudo a Nina.
- Ela veio-se? – pergunta Nina.
Étiene enrubesce. É a primeira vez que os três falam de sexo. A primeira vez que Nina faz uma pergunta tão frontal, que lhes parece mesmo brutal.
- Não sei muito bem… Mas estava a arfar.
Rebentam de riso em uníssono. Um riso de crianças que já não desejam muito ser crianças. Mas, apesar de tudo, a infância é boa.
Apanhados entre rebuçados e o futuro. Entre as patetices e a mudança de voz. Entre os raios de bicicleta a que se colam pedaços de cartão para fazerem barulho e os sonhos de grandes distâncias percorridas de mota.”

É entre estas sonoridades tão próprias da infância e da entrada na juventude, tão agradáveis recordar que, é-nos impossível não sorrir e sentirmo-nos perto destes três. Mas mesmo sem sentir esta identificação geracional, a escrita e a sensibilidade ao contar que Perrin domina, não deixará ninguém indiferente.

“Até ao dia em que conheceu Nina e Étiene, Adrien era alguém que não deixava marcas no papel. Um cartucho de tinta vazio. Tinha sempre a sensação de ter nascido sem cor, completamente transparente. Até Nina e Étiene, por muito que premissem os botões, a folha de papel permanecia virgem. Nina e Étiene devolveram-lhe os seus cinco sentidos. E mais o sopro. E seguramente a esperança. Eis porque lhes era tão ligado.”

Um sopro e a esperança, é Louise. Tal como são o ar que se respira, uns para os outros, pelo menos até o acaso lhes saquear as ilusões e redefinir as vidas: “por vezes vivemos coisas que imaginámos ou receámos tanto que, quando ocorrem deveras, não as vivemos, ficamos fora dos acontecimentos.”

“O meu corpo está morto há anos. Uma pele que não é tocada morre. Um corpo que não é observado torna-se invernal. As camadas de frio sobrepõem-se. Neves perpétuas. Deixa de haver outras estações. Deixa de haver desejo. Deixa de haver esperança no regresso. Fica imobilizado no passado, fixado algures. Não sei onde. Tem medo. Tenho medo. O meu corpo já não tem presente.”

Parte da beleza deste livro, é ter descrições que, embora sejam de uma determinada fase da vida de um deles, podem aplicar-se a todos, mais tarde ou mais cedo, e esse entendimento de que os três passam por coisas iguais, mesmo a acharem-se totalmente diferentes, acontece perante os olhos do leitor com uma mestria delicada e hábil, acrescentando sempre mais profundidade às personagens. E arrancando uma risada ao leitor.

“Étiene poderia tê-los denunciado, dar um soco a Adrien e um tabefe à sua irmãzinha, mas não fez nada (…). Pelo menos Louise não andava a sair com parvos. E não lhe parecia descabido que aqueles estivessem juntos (…). Sempre calados ou a falarem baixinho, a lerem sem ninguém os obrigar, a nunca perderem as estribeiras, a pousarem os seus olhos de pescada frita sobre a «beleza do mundo».

Boas leituras, minhas pescadas fritas 😉

terça-feira, 16 de abril de 2024

«Amor estragado» de Ana Bárbara Pedrosa :: Opinião

"Um dia, depois de um bagaço, desabafei com um amigo, que tinha sido burro e era padre. Coitado, aquilo dava-me pena. Passava os dias no meio de velhas beatas e nunca ia saber que o único milagre que existe está num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais."

Que se sublinhe "num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais"

Embora seja uma premissa mais do que errada, abusiva, violenta, tóxica e transtornante, essa é a premissa para se entrar na cabeça do Manel, e por sua vez, na voz que a Ana Bárbara tão acutilantemente criou para nos destabilizar com esta história desestruturante e destruidora de tudo o que pode ser uma relação e uma família, menos amor, desejo, compreensão, empatia, cumplicidade ou sequer intimidade. Tudo o que aqui nos surge perante os olhos e nos assome à garganta como asco e vómito, é uma dura e triste realidade. É a realidade de muitas famílias, mulheres e filhos. Uma realidade que pode estar debaixo do nosso nariz, na porta ao lado, no quarto por baixo do nosso, na nossa família, na casa do nosso irmão. É a realidade e nós fazemos parte dela. Por isso, metade do asco, da aspereza e da realidade está-nos debaixo das unhas e isso é feito com uma mestria brutal e desarmante, conseguida nesta escrita crua e estragada de Ana Bárbara.

terça-feira, 2 de abril de 2024

«Lições de Grego» de Han Kang - Opinião

Não aprendi grego, mas como se costuma dizer, vi-me grega para chegar ao fim deste romance labiríntico e enigmático de Han Kang. Não chegam a ser duzentas páginas, mas o leitor fica perdido entre as aulas, o mutismo, as ideias complexas, a dificuldade de apanhar o fio à meada. Chega a faltar o ar!

É que as vozes mudam e o leitor tem alguma dificuldade em perceber quem é quem, embora se perceba que o peso do outro e de outras fases da vida sejam tão ou mais importantes que o presente, em que um homem, o professor de grego, está a cegar e uma mulher, a aluna, encerrada no seu mutismo, não toma a palavra. 

Nesse aspecto, a narrativa está bem conseguida, ela não fala e quer sumir-se para dentro de si e da escuridão das suas roupas negras, então a narração é assumida por um narrador que tudo sabe. Que fala por ela.

“A única pessoa que sabia que a sua vida estava violentamente dividida em duas era ela própria. As palavras que anotava na parte de trás do diário contorciam-se por vontade própria, formando frases estranhas. De vez em quando essas palavras metiam-se no sono como espetos…”

No caso do professor, ele quer falar, precisa falar, então é-lhe dada voz enquanto recorda a fuga para Alemanha e o regresso à Coreia do Sul, um pai, uma mulher…