domingo, 26 de maio de 2024

«Águas passadas» - de João tordo :: Opinião

"Fui eu quem a descobriu, à afogada, no meu passeio matinal pela arriba. E a culpa nasce precisamente daí - de o meu temperamento melancólico se alimentar positivamente da morbidez; de o sofrimento ser o seu húmus mais fértil. Ao encontrar o cadáver, a minha vida ganhou novo alento.
Vergonhosamente, desabrochei."

É com esta descrição dele mesmo que Cícero se apresenta. Parte do alento que tinha perdido, sabemos em breve, deve-se à falta que Simples lhe faz, o cão que morreu faz pouco tempo. Mas a maior parte do seu sofrimento data de anos, muito antes de se ter tornado um eremita à beira da falésia na escarpada Azóia. E logo aí conquistou a minha atenção. Eu vi-me, contemplativa como Cícero e acompanhada de um cão, nos trilhos que serpenteiam o precipício com vista para o Atlântico. 

E claro, ter sabido que a série está a ser adaptada para série televisiva, colocou a leitura noutro nível. Eu ia lendo e fazendo o meu próprio casting. 

Quando o corpo de Charlie é descoberto, ficamos a conhecer a Subcomissária Pilar Benamor, a quem é pedido: "caso decida ir buscar a pobre rapariga ao Inferno, por favor, não olhe para trás no regresso.". Evocando o mito de Orfeu, o legista parece adivinhar os horrores que aí irão, embora Cícero já nos tenha dito que ele voltará a matar.


É nesta busca pelo culpado que os caminhos do eremita e da agente se enredaram, juntamente com capítulos da história da corrupção em Portugal, a forma de actuação da policia e da comunicação social, uma viagem à década de 80 e à abundância da droga em Lisboa, a literatura os mitos, a religião e as reflexões que a solidão desperta, a dependência e os grupos de apoio, o sexo, a violência e a tentativa de fugir à banalização do desprezo e da indiferença; que como vamos ver não prolifera só nas forças policiais nem é só fruto desse trabalho de prontidão para muitas coisas que mais ninguém quer ver. 

Será essa banalização uma resposta ao sigilo, ao dever de calar até as próprias emoções? Uma banalização que vem de um vazio e que só o faz crescer?
Um vazio que deixa muitas vítimas e levanta muitas questões, especialmente a do sentido da vida.

"(...) Não sei se pensava em sexo. Acho que não. O problema não é a coisa em si, mas não haver remédio. É assim que funciona o vazio, não é? Alimenta-se de coisas que não o preenchem. Como tentar enfiar triângulos num quadrado." A mulher pareceu fraquejar. "O vazio ri-se de nós."

São os fantasmas de cada personagem que lhes trazem uma profundidade que conquista o leitor. Ambos perderam pessoas de quem gostavam e capitularam perante a velha máxima: o tempo cura tudo. Não cura, só os colocou mais doentes e dependentes, por outro lado, serão essas fragilidades (e algumas insanidades) que lhes permitirão avançar, mesmo que derrotados inúmeras vezes.

"A agente passou por cá outra vez esta manhã. Usava as mesmas roupas, o cabelo apanhado, sem chapéu. Reparei como é bonita. Tem olhos cor de amêndoa, de pura tristeza, acentuada pelas pálpebras descaídas, e fala de boca fechada (os dentes quase cerrados), tive dificuldade em compreendê-la.
"Recebi o seu recado", repetiu ela.
Parecia ainda mais derrotada do que antes: uma criança que perdeu ao mesmo jogo pela centésima vez.
(...)
O distintivo do ombro continuava solto, o pedaço de tecido recusando-se a ficar no sítio. Ela sentou-se, Laércio levantou-se com uns quantos papéis na mão.
"Pareces um acidente de comboio", disse ele.
"Vai-te lixar", respondeu ela.
Os olhos pesavam-lhe como dois chumbos; a língua de cortiça, o sabor doce e amargo do sexo no palato. A culpa era uma espécie de segunda pele, tão espessa, que ela temia que fosse visível a olho nu."

Vamos conhecendo Pilar pelos homens com quem trabalha e o narrador, e vendo a sua escassa sobriedade emocional, percebendo que irá resvalar em breve, mas ainda assim consegue surpreender-nos pela forma como o faz, expondo a adição que tem: "Que era, afinal, aquele constante pisar do risco senão o secreto desejo de ser apanhada?"

Um pouco como o assassino, já que não há crimes perfeitos e todos eles se alimentam de inveja, sexo e ambição (como Tordo nos diz no seu primeiro thriller, «A noite em que o verão acabou») e neste caso soberba enorme com uma impunidade de classe, amplamente aqui muito bem explorada. 

Importa dizer que há ainda a chuva. A chuva como personagem, devido à intempérie torrencial que assolou muitas partes do país, e Lisboa em particular: "entre os dias 17 e 28 de Janeiro de 2019, na área da Grande Lisboa, choveu mais do que entre todos os dias 17 e 28 de todos os Janeiros dos setenta e sete anos anteriores." Um detalhe muito importante para dar o cenário certo a esta narrativa, "uma maré de coisas ruins" que bem podia aparecer em rodapé, nos rodapés do apocalipse se "o rio de informação não fosse tão monotemático". 

Sem esquecer que: "O Homem Lá de Cima tem um sentido de humor retorcido e, portanto, ainda que eu acredite n'Ele - foi a minha única companhia nestes anos de desterro -, tenho-Lhe uma espécie de ódio entranhado.
Uma ferrenha aversão.
Esta manhã, abandonei de vez o livro de Tolstoi. Irritou-me tanto, que fui até à ponta da arriba, onde principia a escarpa que cai sobre as águas geladas, e lancei-o com a força que me resta
Antes de me desfazer dele, li esta frase: Pela fé concluímos que, para compreender o sentido da vida, devo renunciar à minha razão, aquela mesma que exige um sentido para a vida."

Isso e os cães! Que os cães melhoram tudo.

"Por vezes, penso que os cães são ofertas de Deus; as formas possíveis de consolo para o Homem, perdido nas suas questões irrespondíveis."

E tudo se mistura e tem a tonalidade da melancolia, tão característica nas obras de João Tordo, de quem não lia nada desde o muito apreciado «Manual de sobrevivência de um escritor». E ainda bem que a vontade saiu renovada pois fui logo de seguida ler «Cem anos de Perdão».

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