terça-feira, 14 de maio de 2024

«Quarto de despejo» de Carolina Maria Jesus - :: Opinião

"O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade. Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetaculo. A minha porta atual- mente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatorios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas."

Pela mão da VS Editores chega-nos, «Quarto de despejo», um livro há muito aclamado e acarinhado no Brasil. Um registo biográfico que marcar uma viragem na literatura brasileira e pode ser um manifesto feminista pela forma como é relatada esta existência periférica. Carolina Maria Jesus é negra, favelada, iletrada até tarde na sua vida, solteira mas com vários filhos (e não necessariamente do mesmo homem) e como forma de sustento é apanhadora de lixo, mais precisamente papel. 

Nesta existência que tinha tudo para aliar as dificuldades ao abandono e ao alheamento, vemos precisamente o contrário, Carolina Maria tece ideias políticas, analisa a vida na favela e os seus moradores e (maus) vizinhos, o trabalho e a economia doméstica, sem esquecer o lado social do casamento e o papel da mulher, revelando sempre preocupações com a sua saúde física e mental - e a dos seus filhos - vingando no dia-a-dia e mantendo a sua independência. Sem esquecer de se aculturar e escrever e muito disso como forma de auto-cuidado. Por isso mesmo, é revelador e genuíno se pensarmos na década de 50, no regime, na favela, na racialização e claro, nas condicionantes da época para as mulheres em geral.

A linguagem é simples, muito próxima da oralidade e a forma original apresenta-se com erros ortográficos, fruto dessa proximidade á maneira como fala e ainda bem que a opção foi manter exactamente dessa forma, pois dá um cunho ainda mais pessoal e genuíno ao registo diarístico dos seus dias entre catar papel, ouvir as suas valsas, educar os filhos, esticar os poucos reais que consegue e claro, escrever. Escrever todos os dias!

É na escreve que reflecte sobre o que a preocupa, como a necessidade da educação com principal fonte para esbater as desigualdades sociais e não perpetuar caminhos de violência, que é o que mais vê na favela, por isso a certa parte ela nos diz que o seu desgosto não é catar lixo, é viver na favela, embora a pobreza se perceba em tanto e tenha uma linguagem própria que ela mesma não se cansa de revelar.

Excerto:

"Deitamos. Eu estava agitada e nervosa porque queria passar o dia escrevendo. Custei durmir. Eu fiquei cançada de tanto correr para ir chamar a Radio Patrulha. Despertei as 4 horas da manhã com a voz do Alexandre que estava maltratando a sua esposa e chingando o soldado Edison. Dizia:

- Aquele negro sujo me bateu. Mas ele me paga! Eu me vingo! Vendo que o Alexandre não parava de falar, eu fui na Delegacia. O soldado que estava de plantão disse:

Favela é de morte!
(...)
Voltei para a favela, ele estava na rua insultando. Resolvi fazer café. Abri a janela e joguei um pouco dagua no Alexandre.

Você chamou a Radio Patrulha para mim. Negra fidida! Mas você me paga!


21 DE JULHO

Fui catar papel. Estava horrorisada com a cena que o Alexandre representou de madrugada. Catei muitos ferros e pouco papel. Quando eu estava perto da banca de jornal tro- pecei e caí. Devido eu estar muito suja, um homem gritou:
É fome!
E me deram esmola. Mas eu caí porque estava com sono. Pensei no Alexandre porque ele não precisa pensar no trabalho. Porque obriga a esposa a pedir esmola. Ele tem uma filha: a Dica. A menina tem 9 anos. Ela pede esmola de manhã e vai para (…)


22 DE JULHO

Eu fui trabalhar e avisei os visinhos:
Se o Alexandre aborrecer, avise! Saí pensando na minha vida infausta. Já faz duas semanas que eu não lavo roupa por falta de sabão. As camas estão sujas que até dá nojo.
Não fiquei revoltada com a observação do homem desconhecido referindo-se a minha sujeira. Creio que devo andar com um cartas nas costas:
Se estou suja é porque não tenho sabão. (....)"

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