sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

«Pedro Páramo» de Juan Rulfo :: Opinião

“(…) não há nomes próprios mais próprios do que os das pessoas dos seus livros.” Diz-nos Gabriel Garcia Marques nas breves notas nostálgicas sobre Juan Rulfo e é com essa enaltação e o entusiasmo da leitura que o leitor pode começar a embrenhar-se nesse clássico. É claro que é um clássico e o nobel coloca Rulfo do panteão dos grandes. Um génio na forma e na estrutura, nos diálogos, nas cenas, na composição de cenários com apenas uma mancheia de palavras. Não lhe escapa nada. Nem os nomes dos personagens fogem da sua genialidade. Antes pelo contrário.

Só há um senão em “Pedro Páramo”, as almas penam ou são penadas?

“- Este mundo, que nos aperta por todos os lados, que vai esvaziando punhados do nosso pó aqui e ali, desfazendo-nos em pedaços como se orvalhasse a terra com o nosso sangue. Que fazemos nós? Porque nos apodreceu a alma?” (pp105)

Avistamos Comala, ainda vivos, embora cambados como um sapato velho, devido à longa viagem em “tempo da canícula, quando o ar de Agosto sopra quente, envenenado pelo odor putrefacto.” A visão ao longe é triste e cinzenta, puro calor sem ar e o Almocreve diz que em Comala ainda será pior.

Com os diálogos e as descrições do que vê, o narrador coloca-nos junto dele desde o início. E logo aí há um aviso, desceremos a um lugar desolado, vazio, assombrado. Os mortos daquela terra, quando chegam ao Inferno, voltam amiúde a procurar o calor a que estão habituados.

Tudo naquele local é feio, retorcido, fétido, pobre, duro. Tudo contrasta com as memórias da mãe de Juan Preciado. O verde, os pastos, as searas… tudo secou. Tudo morreu. Aparentemente como tudo o resto. O que não pereceu, ensandeceu.

“A cama era de verga, coberta com mantas que cheiravam a urina, como se nunca tivessem sido arejadas ao sol; e a almofada era um enxergão cheio de cotão ou de uma lã tão dura ou tão suada que endurecera como madeira.”

A sujidade, a traição, o medo, a violência, as dificuldades e os abusos constantes por anos a fio, espremeram as gentes de Comala até ao tutano. Juan não fugirá à sina dos daquela terra, enrijecerá de medo, mas não resistirá. Entretanto o leitor, vai emudecendo e ficando sem fôlego, lendo abruptamente as cenas que sucedem umas atrás das outras, cruzando épocas e histórias, para se perder e logo a seguir se achar, ou achar que se achou entre almas perdidas e histórias ainda mais de perdição.

“E, para cúmulo, a aldeia foi ficando deserta; todos se fizeram à estrada para novos rumos e com eles partiu também a caridade de que eu vivia. Sentei-me à espera da morte.
(…)
- Lá fora, o tempo deve estar a mudar. A minha mãe dizia-me que mal começava a chover tudo se enchia de luzes e do cheiro verde dos rebentos. (…)
- Não sei, Juan Preciado. Há já tantos anos que não erguia a cara que me esqueci do céu. E ainda que o tivesse feito, que teria eu ganho? O céu está tão alto e os meus olhos tão sem olhar que vivia contente só por saber onde ficava a terra.”

A brilhar nesta Comala só a escrita de Rulfo, visível em cada descrição dos seus personagens, embora na maioria seja irreparáveis, mas arrebatadores. A mudança constante dos tempos em que acção decorre, entre memórias dos que sofreram às mãos do cacique, desfiguram a imagem de Pedro Páramo, um príncipe, um conquistador, um Maquievel senhorial, capaz de cometer as crueldades de um só golpe, mas distribuindo ódio e violência por todos, um por um, quase ninguém lhe escapou.

“Quisera adivinhar os seus pensamentos e ver a batalha daquele coração para rejeitar as imagens que ele semeava dentro dela.”

Em batalha andamos nós leitores, descodificando como tudo desmorona, até mesmo Pedro Páramo.

“Pedro Páramo, a personagem, é uma personagem de epopeia. O seu romance, aquele que tem o seu nome, é um mito que despoja a personagem do seu carácter épico” («Rulfo, o tempo do mito» por Carlos Fuentes)